A grande fraude dos vinhos raros

Há quem chame a Maureen Downey “detective do vinho” pela forma como se dedicou a estudar as tácticas do falsificadores e a denunciá-los. Um dos maiores, Rudy Kurniawan, está na prisão, mas muitos outros continuam a agir em total impunidade. Maureen esteve em Portugal para a wine summit Must e contou a sua história.

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Se havia alguma coisa que chamava a atenção naquele rapaz era o rosto de bebé, de traços asiáticos, e um certo ar de inocência. Rudy Kurniawan apareceu no mundo dos leilões de vinho de Los Angeles no início do século XXI e, de repente, parecia que nada o poderia parar.

Simpático e bem disposto, o jovem indonésio de origem chinesa (cujo verdadeiro nome é Zhen Wang Huang) comprava as garrafas de vinho mais caras que apareciam à venda e, no clima de euforia que se vivia na época, ninguém parecia demasiado preocupado em perceber de onde vinha tanto dinheiro.

Mas quando Rudy começou a trazer garrafas da sua colecção para vender, houve pelo menos uma pessoa que ouviu disparar as campainhas de alarme. Maureen Downey, uma das raras mulheres neste meio, tinha começado a trabalhar numa nova leiloeira, a Zachys Auction. Conhecera-o cerca de ano e meio antes, mas surpreendeu-se ao ver como ele estava diferente, mais bem vestido, mais seguro de si. Desconfiou. E, quando ele lhe enviou uma caixa de vinhos antigos para leilão, ela pediu-lhe os recibos – que ele não tinha.

Hoje, Rudy Kurniawan, em tempos amigo das maiores e mais influentes personalidades ligadas ao vinho na Califórnia, está a cumprir uma pena de dez anos de prisão (foi condenado em 2013) por ter vendido vinho falsificado no valor de muitos milhões de dólares. A sua história já deu um livro (In Vino Duplicitas: The Rise and Fall of a Wine Forger Extraordinaire, do jornalista Peter Hellman) e um documentário (Sour Grapes, do inglês Jerry Rothwell e do norte-americano Reuben Atlas).

Quando ao Maureen Downey, esteve recentemente em Lisboa para participar na wine summit Must – Fermenting Ideas, organizada no Centro de Congressos do Estoril, pelo crítico de vinhos Rui Falcão e pelo jornalista Paulo Salvador. Aí, aquela a quem chamam a “detective do vinho” subiu ao palco (com a ajuda de canadianas devido a um problema numa perna) e falou sobre as grandes fraudes que continuam a existir no mundo dos vinhos mais exclusivos. No final, conversou com o P2.

“Iniciei-me nos leilões em 2000 e apercebi-me que havia pessoas a vender garrafas falsificadas”, conta. “A partir de certa altura comecei a identificar pessoas que vendiam essas garrafas, mas quando tentei falar do assunto, ninguém me prestava atenção. Na altura, era a única mulher na indústria nos Estados Unidos, era jovem e ninguém me dava ouvidos.” Lamenta que, ainda hoje, nos EUA muitos jornalistas “não queiram expor as fraudes porque são amigos dos falsificadores e dos aldrabões e, se o fizerem, deixam de ser convidados para as festas”.

A vida de Rudy Kurniawan era precisamente uma vida de festas. E enquanto o vinho corria e se abriam garrafas supostamente raras, a capacidade mesmo de especialistas e coleccionadores para distinguir um vinho real de um falsificado ia-se diluindo. Inicialmente, explica o autor Peter Hellman numa entrevista à Wine Enthusiast, Rudy vendia garrafas verdadeiras, “mas a realidade é que esses vinhos, Château Lafleur 1950, Romanée-Conti 1945, os poucos que ele conseguiu comprar, acabaram por se esgotar”. Houve até um momento em que era conhecido como “Dr Conti” pela quantidade de garrafas daquele Domaine que comprava.

Por ser tão fácil enganar os incautos é que Maureen Downey decidiu tornar-se a tal “detective do vinho”. “Em 2005 criei a minha própria empresa, dirigida aos coleccionadores que, percebi entretanto, precisavam de conselho qualificado.” Teve, contudo, que fazer muito do percurso pelos seus próprios meios. “Na altura, começava a especializar-me mas estava muito longe de saber o que sei hoje. Não tinha ninguém que me ensinasse, por isso ia a museus e falava com o especialista em papel antigo, depois ia a tipografias e perguntava-lhes sobre o tipo de impressão, aprendi sobre vidro com especialistas em vidro. Recolhi informação de muitos sítios diferentes. Comprei livros e estudei outros tipos de falsificações. Não foi fácil, mas tornou-me uma perita mais capaz, porque tenho conhecimentos em todos estes diferentes campos.”

Na sua apresentação no Must, Maureen explicou os detalhes a que se tem que prestar atenção quando se suspeita que uma garrafa é uma falsificação (toda a informação está no site WineFraud.com, mas sujeita a pagamento). São muito poucas as pessoas no mundo que estão habituadas a beber vinhos raros, por isso o sabor é o mais difícil de identificar.

No seu livro, Peter Hellman explica que uma garrafa de oito dólares é bastante parecida com uma de 50 ou até com uma de 700 e são poucos os que têm a experiência e a capacidade para fazer a distinção a partir apenas da prova do vinho. Várias pessoas que conheceram Rudy nos seus tempos áureos dizem que ele tinha um palato excepcional e que era capaz de identificar muitos vinhos apenas pelo gosto. Isso, sem dúvida, ajudou-o a fazer falsificações muito mais perfeitas do que o habitual, usando vinhos antigos (mas não caros) da Borgonha e misturando-os com vinhos mais jovens da Califórnia.  

Mas, no geral, é mais fácil detectar uma fraude pelo vidro usado na garrafa e, sobretudo, o rótulo, a rolha e o lacre. As datas dos vinhos são também uma fonte de informação muito útil – conta a The New Yorker que um dos lotes identificados como fraudulentos, vendidos pela leiloeira Acker Merrall & Condit (a que Rudy utilizava) incluía garrafas do Domaine Ponsot Clos Saint-Denis (Borgonha) de 1945, 1949 e 1966. Um erro básico, já que o Domaine Ponsot só começara a produzir aquele vinho específico em 1982. Outro erro: a venda, num leilão em 2006, por 95 mil dólares, de seis garrafas de Domaine Georges Roumier Bonnes Mares 1923, sendo que, de acordo com a acusação, este domaine só começou a produzir vinho em 1924.

Laurent Ponsot, do Domaine Ponsot, foi um dos que empenhou o seu tempo e esforço a desmascarar Rudy. Tal como o multi-milionário Bill Koch que, descreve ainda a New Yorker, tem na adega da sua mansão em Palm Beach, Florida, mais de quatro milhões de dólares em vinho falsificado. Mas estes são casos excepcionais.

A maioria dos clientes enganados, diz ao P2 Maureen Downey, prefere não apresentar queixa: “Muitos produtores que sabem que está a ser vendido vinho falsificado usando os seus rótulos preferem não apresentar queixa porque não querem ir parar aos jornais. Aí, a polícia diz que não pode fazer nada. Porque é que estamos a perder tempo com crimes cujas vítimas não querem queixar-se? Isso é muito frustrante para mim.”

O que a empresa de Maureen faz é aconselhar compradores a adquirir, ou não, determinadas garrafas que aparecem no mercado, autenticando-as. As fraudes, neste e noutros mercados de luxo, sempre existiram. Mas a especialista acredita que “há hoje um novo panorama porque o comércio global do vinho é tão diferente, opaco, com tantas zonas cinzentas, e vendedores do mercado negro que se tornaram partes totalmente legítimas da cadeia de fornecimento”.

O que é grave, sublinha, é que “ninguém está a controlá-los ou a acompanhar as suas vendas”. Quando garrafas raras aparecem no mercado, cria-se uma expectativa tão grande que “os compradores nem perguntam se é autêntico ou não” – mesmo quando custam “15 mil dólares ou 20 mil dólares, como acontece muitas vezes”. 

É difícil saber a real dimensão deste mercado de vinho falsificado. Fala-se muitas vezes em 20% do valor de todo o vinho vendido, mas Maureen mostra-se mais prudente: “Não temos uma ideia clara. Se tivéssemos, saberíamos por onde começar a luta. Ouço falar de uma nova fonte de vinho falsificado várias vezes por mês. E [os falsificadores] estão a melhorar a cada dia. Agora até incluem nos rótulos tinta invisível anti-fraude”.

Outro aspecto complicado da luta contra as falsificações é a lei. Em muitos casos, explica, quando se detecta uma fraude num leilão, as garrafas são recolhidas mas não destruídas, e são entregues aos vendedores/falsificadores, que são obrigados a devolver o dinheiro recebido por elas mas, voltando a tê-las na sua posse, as podem revender – sendo que, segundo Maureen, muitas vezes elas valorizaram-se e os falsificadores acabam por fazer ainda mais dinheiro com outros coleccionadores menos atentos.

Um texto do The Guardian sobre Rudy Kurniawan lembra que “parte da razão pela qual demorou tanto tempo para a fraude ser descoberta tem a ver com o facto de, enquanto uma garrafa de vinho falso passar de adega em adega, ninguém estar a perder”.

O mesmo texto explica que, apesar de Kurniawan ter sido o primeiro falsificador de vinho julgado e condenado nos EUA, as investigações não seguiram a pista até à origem do dinheiro: a Indonésia. Lauren Ponsot, do Domaine Ponsot, “acredita que seria impossível para um único homem produzir tantas garrafas e que a fraude no mundo do vinho é um problema muito maior do que se imagina”, suspeitando mesmo que “80% do vinho da Borgonha alegadamente anterior a 1980 é falsificado”.

Quando se apresenta em público, como aconteceu no Must, Maureen Downey pede para que a sua apresentação não seja filmada nem gravada. Sofre muitas pressões e ameaças? Encolhe os ombros. “Não me preocupo com esses tipos. São pessoas pequenas. Aldrabões. Não posso passar a minha vida a preocupar-me com isso. Vou usar o meu tempo e energia a ajudar os consumidores em vez de pensar no que os idiotas me podem fazer.”

O trabalho dela é, para usar a sua própria expressão, “combater os bad guys”. E, pelo menos um deles já está atrás das grades – Rudy Kurniawan não sairá antes de 2021 e, quando isso acontecer, será deportado para a Indonésia.

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