Uma granita e um resort empoleirado nos penhascos de Cefalù

Cefalù tem um dos portos “mais charmosos” e um dos “pores do sol mais inesquecíveis” da Sicília. Palavras de um pescador e de uma música de rua siciliana que encontramos pelo caminho, numa visita aquando da reabertura do mais recente resort Club Med. Sempre com o Tirreno a alongar a vista para a frente e as montanhas Madonias a taparem-na, atrás.

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Mauro Puccini

Maria Foglietto sai do mar Tirreno desnorteada. A culpa é do cabelo molhado que lhe tapa os olhos, cai pelo nariz e arranja maneira de se enfiar na boca. E ela, sem conseguir ver por onde vai, continua ofegante a desenvencilhar-se dos caracóis. Começa por afastá-los da cara com a ajuda dos cotovelos. Sem sucesso, volta a tentar com os pulsos. Desiste. Não pode fazer mais nada — as mãos, a escolha mais óbvia, estão ocupadas com o plástico que acabou de pescar da costa de Cefalù, um dos portos de pesca mais pitorescos no Norte de Sicília.

Num último esforço, Maria dá um salto para fugir do alcance das ondas. É só quando pisa areia seca que deixa cair o lixo resgatado daquela parte do mar Mediterrâneo, a oeste de Itália. Com um único gesto, enxota finalmente o cabelo todo da cara, abanando a cabeça como se estivesse a dizer “não” a tudo no mundo. Quando pára e abre os olhos, começa a rir-se, aliviada.

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Os sicilianos preferem sempre o riso aberto ao sorriso. E Maria, de gargalhada infantil, não é excepção. Conhecemo-la na praia de Cefalù, uma cidade portuária apenas a 70 quilómetros do centro de Palermo e, por isso, a escapadela de um dia perfeita para quem aterra na capital da ilha italiana. O outro aeroporto mais próximo fica a 180 quilómetros, em Catânia.

É no meio de mergulhos, com a água límpida do Tirreno pela cintura, que se pode ter uma das melhores vistas para a cidade. Junto do pontão antigo (mollo vechchio), os barcos coloridos dos pescadores desalinham-se pela areia pontuada de guarda-sóis. À frente, o areal é interrompido por construções altas, em pedra, que se encavalitam umas sobre as outras na linha da praia e dão sombra a quem descansa na toalha. Do mar, não se vêem as portas das casas e dos restaurantes castanhos, só varandas e janelas de vários tamanhos, que parecem ter sido dispersas ao acaso nas paredes desgastadas pela erosão. Tinham tudo para ser feias, mas inseridas naquele cenário são só charmosas.

Se o olhar se aborrecer, basta levantar mais a cabeça e perder-se pelos altos e baixos das montanhas que rodeiam toda a praia e só desaparecem engolidas pelo horizonte. Quase em cada vale das Madonias floresce uma aldeia (a pacata Castelbuono, a 20 quilómetros, pode merecer a sua atenção). E é quase já a desaparecer, no meio de todo esse verde, que salta o cor-de-rosa pálido da igreja de Santa Lucia. Reconhecemo-la de imediato. Já a tínhamos visto enquanto passeávamos pelo novo Club Med Cefalù, o resort que reabriu em Junho, totalmente renovado, e que tem outro dos melhores miradouros para a cidade. Mas já lá iremos.

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O Mar Tirreno, no porto de Cefalù, com os restaurantes da linha da costa Getty Images

Por agora, continuamos de molho. A água tem a temperatura agradável, a tonalidade azul-turquesa, quase transparente, a calma do Mediterrâneo — e, em alguns dias, os mesmos problemas.

Antes de Maria mergulhar, também nós chegávamos à toalha com uma garrafa de tomate vazia na mão. Estava a boiar no mesmo mar que corre o risco de se transformar numa sopa de plástico, alerta a World Wide Fund for Nature (WWFN), mesmo a tempo do início do Verão. Segundo o relatório desta organização não-governamental pelo ambiente, divulgado a 8 de Junho, Dia Mundial dos Oceanos, quem visita Itália, como é o caso, mas também a Turquia, Espanha, Egipto e França, contribui para um aumento da poluição marinha em cerca de 40%. Todos os Verões.

Entre os resíduos que flutuam no Mediterrâneo, 95% são compostos por plásticos. O nosso achado entra no grupo dos outros 5%. É feita de vidro. Num impulso para juntar esforços, pegamos nela e dirigimo-nos à rapariga siciliana que vimos antes a apanhar lixo. Uma estranha forma de começar conversa: presentear o outro com uma garrafa de tomatada vazia.

“Origem 100% siciliana?”, lê ela no rótulo, divertida. “Meu Deus, a ironia.” Maria conta-nos que em criança apanhava conchas e búzios. Não se baixava por causa do lixo. Aos 29 anos, não o consegue ignorar. “Está por toda a parte, não posso não me baixar.” “Quem iria querer sujar sítios tão lindos?”, pergunta-se, sem querer saber da resposta.

Ainda assim, aquela praia, comenta, “é das mais limpas” que viu nos últimos tempos. Foglietto é música de rua e por isso muda de cidade várias vezes ao ano. Quase sempre para sítios com mar. E sempre para sítios com turistas. Actua em bares à noite e na rua durante o dia. Ou ao contrário. Não tem muitas regras, diz-nos, num inglês cantado, que às vezes é interrompido por uma frase em siciliano, sem pronúncia noutra língua. Em Cefalù, tem apostado na Via Vittorio Emanuele, paralela à praia e apenas a quatro minutos a pé da praça central (Piazza Del Duomo).

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Porta Marina, porto de Cefalù Pixabay

Se pudesse, tenta explicar-se, vivia com um pé no Norte da Grécia e outro na Sicília. E, apesar de todas as noites tocar guitarra e cantar músicas tradicionais sicilianas (nada de Bella Ciao, no entanto, ri-se), tem uma banda com nome grego. Piskelia. O que significa? “Pois, significa ‘alma siciliana’”, sorri, “como a minha”.

Maria não nasceu longe da antiga vila de pescadores que se pensa também ter o nome derivado da palavra grega kephalee, que pode ser traduzida para “cabeça”. Cresceu em Catanissetta, a duas horas de carro no sentido contrário ao do mar, e depois viveu por toda a Europa. “É muito bonita a minha cidade”, garante, recordando uma cidade que ainda não entra nos principais roteiros de quem visita a ilha italiana. “Mas Cefalù é…” Procura a palavra certa. “Olha, é mágico.” Volta atrás. “Não, não é isso! Quer dizer, é mágico, mas isso é um cliché.”

Pensa mais um segundo, a olhar para o mar que lhe traz tudo, “até inspiração”. “Parece que foi pintado para estar num filme.” E desata a rir à gargalhada. “Por ainda mais cliché que isto seja.”

Granita, ou como conquistar pela boca

Não é, no entanto, mentira. Em Cefalù, a palavra “magia” é atirada sem medo que o feitiço se vire contra os feiticeiros. Não há qualquer ilusão: está à vista de todos que a visitam. Ouvimo-la nos restaurantes (onde se começou há pouco tempo a falar também em francês e inglês); nas lojas que enchem ruas inteiras; das bocas orgulhosas, mas sensatas, dos pescadores que ainda restam e que não são tímidos a meter conversa.

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Um deles conta-nos que alguns dos barcos atracados em frente à Porta Marina do porto velho já foram lançados numa noite à água, não para apanhar peixe, mas para entrar num filme. “O meu barco não foi, mas só porque eu não quis”, graceja o homem de pele profundamente morena e olhos ainda mais profundamente azuis que nos mostra, com as mãos, como se fosse uma criança, que tem oitenta anos. “Não me lembra agora é o nome do filme…” Avivámos-lhe a memória: Nuovo Cinema Paradiso (1988). “Uau, eu podia ter sido assim tão famoso?”, atira, sarcástico. 

Podia, pelo menos, ter sido um dos actores figurantes no filme realizado por Giuseppe Tornatore, que recebeu o Grande prémio do Júri no Festival de Cannes, em 1989 e, dois anos depois, o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Uma das cenas foi gravada entre o mar e o pontão antigo da cidade. “Nessas imagens, a beleza deste lugar funde-se com o esplendor de uma obra que deu ao mundo o espírito poético de sicilianità”, ficou escrito, numa placa que foi colocada no pontão em 2014, aquando das comemorações de 25 anos do lançamento da longa-metragem.

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A Catedral de Cefalù, no centro da cidade Getty Images

Cinema Paradiso  deambula pela “nostalgia e paixão sicilianas”, mas passeia-se pouco pelas ruas estreitas da cidade, ainda com influências árabes e gregas, até nas lojas de recordações. O filme não mostra, por exemplo, o Lavatoio, um lavatório medieval, escondido entre prédios na Via Vittorio Emanuele, que ainda tem água, oriunda do rio Cefalino. Ou a catedral, a principal marca da passagem dos normandos que, com as quatro torres simétricas a formar um quadrado, faz lembrar uma fortaleza. É lá que se esconde um dos “mais bonitos complexos de azulejos bizantinos de Itália”, lê-se, num guia, à entrada. Conta a lenda que foi mandada construir pelo rei Rogério II, no século XII, em honra de São Salvador por este o ter salvado durante uma tempestade no mar.

Nós também ali chegamos numa manhã de segunda-feira, em que deixamos o céu cinzento no Porto transformar-se em azul, para cumprir uma promessa. Estão quase 30 graus. São quase dez horas — e, na Sicília, isto significa uma coisa: a janela de tempo para provar, ao pequeno-almoço, “uma granita acabada de fazer” está quase a fechar-se.

A Fugas viajou a convite do Club Med

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