Quem tem medo da democracia europeia?

A democracia europeia, lá onde a deixam funcionar, não fica a dever a nenhuma das nossas democracias nacionais.

“Ah, e tal, é impossível a democracia europeia funcionar” — diz-se. Ora porque os “europeus são muito diferentes uns dos outros” — como se os americanos dos estados onde há e onde não há pena de morte fossem parecidíssimos entre si. Ora porque “a diversidade de línguas torna impossível a emergência de um demos” — como se os indianos, com dezenas de idiomas, pelo menos quatro grandes religiões e centenas de castas, não tivessem um espaço democrático para mais de mil milhões de pessoas. Ai, porque “Bruxelas é muito longe” — como se Brasília fosse perto de Uraimutã, Roraima ou Anta Gorda, Rio Grande do Sul.

Meus caros, metam isto na cabeça. A democracia europeia não funciona pela mesma razão que, antes de haver geringonça, era “impossível” a esquerda entender-se em Portugal. Lembram-se? Dantes também havia imensas teorias para a esquerda não se entender: eram os traumas do PREC, era “o PS mais à direita da Europa”, era a sociologia de café sobre as bases eleitorais de cada partido, era aquele sucesso dos verões passados, hoje esquecido, “ajudar o PS a cumprir com o Tratado Orçamental é vender a alma por umas negociações no parlamento”. Nada disso, a explicação era mais simples: os partidos de esquerda não se entendiam porque as direções dos partidos não queriam que eles se entendessem. Ponto final. Quando houve pressão sobre as lideranças dos partidos, passaram a ter de querer. Em resumo: o supostamente impossível precisava de muitas teorias. O possível só precisa de prática.

Com a democracia europeia passa-se o mesmo, a outra escala, com a mesma lógica ou falta dela. Querem tentar convencer-nos que na era da informação digital e das traduções automáticas, das reuniões pela internet e da escrita colaborativa, dos milhões de jovens erasmus e das discussões nas redes sociais através de vários fusos horários serão impossíveis deliberações pan-europeias (ou mais além). Porquê? Porque, dizem-nos, só é possível “discutir e tomar decisões com aqueles que connosco partilham uma língua, uma história, uma cultura e uma comunidade de destino”. Porque, dizem-nos, numa versão política do velho e famoso anúncio da carapinha e da cabeleira loura, o que é natural e fica bem é não haver “democracia para lá do estado-nação”. Como se dentro da nação nós forçosamente nos entendêssemos (Orbán e Soros são ambos húngaros, lembram-se?) e não fosse possível entendermo-nos entre progressistas, conservadores, liberais ou ecologistas de várias nações diferentes.

O azar é que nada disto é verdade. A democracia europeia, lá onde a deixam funcionar, não fica a dever a nenhuma das nossas democracias nacionais. Vimo-lo de novo esta semana. Onde uma comissão do Parlamento Europeu aprovara uma reforma da diretiva de direitos de autor que obrigava, num agora célebre artigo 13, as plataformas digitais a implementar sistemas de censura prévia automática aos conteúdos que partilhássemos em rede, milhões de cidadãos em toda a UE mobilizaram-se para que tal enormidade não passasse sem mais emendas nem debate. Ontem, ganharam: por 318 votos contra 278, o plenário do PE decidiu que a diretiva não pode seguir já para negociações com a Comissão e o Conselho, e que irá receber emendas.

Falta muita coisa para fazer uma verdadeira Democracia Europeia. Mas não há nenhuma impossibilidade em fazê-la funcionar, a não ser a falta de vontade política, que é possível influenciar a partir da cidadania. Neste momento, não há democracia europeia porque quem tem medo dela não a quer. E quem tem medo da democracia europeia? Aqueles que, entre os burocratas e tecnocratas de um lado, nos governos nacionais por outro, nas chancelarias e até nas elites mediáticas nacionais, vão usufruindo de um poder sem verdadeiro escrutínio.

Nota: A propósito deste tema, decidiu o eurodeputado Marinho e Pinto, pró-Artigo 13, brindar-me com uma crónica cheia de… — como dizê-lo, sem descer ao nível nela utilizado? — enfim, cheia de Marinho e Pinto. Após procurar uma solitária uva naquela imensidão de parra, resumia-se a crónica a um desafio para que eu dissesse onde é que, no artigo 13, se instituía um sistema de censura prévia automática. Desafio aceite: é onde diz que as plataformas digitais devem “adotar medidas (…) que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os prestadores de serviços” ou, na versão da comissão JURI do PE que Marinho e Pinto aprovou: “medidas que levem à não-disponibilização” dos mesmos conteúdos. Ou seja: barrar conteúdos prévia e automaticamente e, pior, sem fiscalização independente nem possibilidade realista de recurso. Marinho e Pinto não esperava que o texto dissesse diretamente “institui-se um sistema de censura prévia automática”, pois não? Mas é o que, na prática, institui. Ou instituiria: felizmente, 318 deputados tiveram mais juízo do que ele.

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