Gabriel Jesus: “Em nome da mãe”

Dos campos pelados do humilde bairro Jardim Peri ao Mundial. O camisola 9 da selecção é um orgulho e exemplo na comunidade dos arrabaldes de São Paulo. Dona Vera continua a ter mão pesada na estrela de 21 anos.

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A imagem de Gabriel Jesus com o gesto que já o celebrizou TATYANA ZENKOVICH/Reuters

Ainda não aconteceu neste Mundial, mas sempre que Gabriel Jesus festeja um golo encosta a mão ao ouvido a imitar um telefonema. O destinatário virtual é a mãe, Vera Lúcia Diniz, e a brincadeira começou depois do avançado centro, de 21 anos, se transferir para o Manchester City de Pep Guardiola.

Um dia não respondeu às mensagens de Dona Vera e quando o fez com um “alô, amor da minha vida”, teve uma resposta ríspida do outro lado: “Alô, um caralho. O que você estava fazendo o dia inteirinho que não mandou mensagem?”.

É assim a relação dos dois desde sempre. A mãe assume o papel de durona e controla com mão de ferro a vida do filho, esteja ele na humilde comunidade do Jardim Peri, no extremo norte de São Paulo, em Inglaterra ou com a camisola 9 no Mundial da Rússia. Moleque ou estrela em ascensão no futebol mundial, ídolo de todo um país. Dona Vera é a figura mais importante da vida do jovem jogador e várias tatuagens no seu corpo testemunham este amor.

O futebol de Gabriel Jesus cresceu nas ruas da maior metrópole do Brasil, nos paralelepípedos e nos campos pelados mais ou menos inclinados. Chegou tarde às academias dos clubes onde os futebolistas são formatados desde crianças. O seu futebol é feliz, libertador, explosivo, imprevisível. Mas quando entrou nas camadas jovens do Palmeiras estas características começaram por não ser apreciadas.

“O seu primeiro treinador nas camadas jovens era Marc Dos Santos, um canadiano que cresceu em Portugal. Foi para o Brasil para liderar as camadas de base do Palmeiras e encontrou o recém-chegado Gabriel Jesus. Não gostou do que viu no garoto e deu ordem aos dirigentes para dispensar o atacante”, contou ao PÚBLICO Márcio Porto, do jornal Lance, que está a acompanhar a selecção brasileira em Kazan. “Quem foi embora foi ele e em boa hora [é actualmente adjunto do Los Angeles FC, nos EUA]”.

Já Gabriel Jesus começou a ser cuidadosamente lapidado, sem que o processo lhe retirasse a espontaneidade. Estreou-se em 2015 pela equipa principal do “verdão”, a três semanas de completar 18 anos, e apontou o seu primeiro golo quatro meses depois. Nos dois anos que ali passou alinhou em 83 partidas e marcou 28 vezes.

Ainda em 2015 foi convocado pela primeira vez para a selecção “canarinha”, na versão sub-20, e no Verão de 2016 conquistou o primeiro título olímpico do Brasil, nos Jogos do Rio de Janeiro, ao lado de Neymar, depois de celebrar três golos.

Guardiola ao telefone

Do outro lado do Atlântico estava alguém atento e determinado. No final de 2016, o telefone de casa de Dona Vera tocou. Era o espanhol Pep Guardiola. A chamada não era totalmente inesperada, mas nada como ouvir da boca do próprio Gabriel: “Estava em casa com a minha família, ele me ligou e conversou comigo. Mas não deu para entender muita coisa. Acho que ele também não me entendeu muito bem”, explicou mais tarde entre gargalhadas o futebolista ao programa Resenha da ESPN Brasil.

Uma conversa de surdos, que foi fundamental para a carreira de Jesus ter um impulso meteórico: “Deu para entender que ele contava comigo, que eu iria ser muito importante lá [no Manchester City]. Isso para um jogador dá muita confiança. Ainda mais sendo o Guardiola, um treinador que muitos jogadores sonham em trabalhar. Foi o que deu para falar”.

Em Janeiro de 2017 aterrou em Manchester com a mãe, o irmão Felipe e três amigos de infância. Guardiola não estava a mentir. Na segunda metade da temporada esteve em 11 jogos e assinou sete golos. Na última (2017-18) explodiu com 42 jogos e 17 golos. As suas exibições no Palmeiras e em Inglaterra valeram-lhe outro telefonema importante. Tite chamou-o para a selecção principal na qualificação para a Rússia e entregou-lhe a titularidade nos quatro jogos do Mundial.

Os Pequeninos do Peri

Entre os festejos do título em Inglaterra pelo City e a partida para Sochi, no Mar Negro, Gabriel visitou os seus antigos companheiros no Jardim Peri. Foi aqui que cresceu nesta comunidade pobre, erguida em 1951, no sopé da Serra Cantareira, nos arredores paulistas. Casas abarracadas, construídas umas por cima das outras.

Dona Vera mudara-se para aqui depois da traumática separação do pai de Gabriel, que o deixou com os seus três irmãos mais velhos e escolheu outra companheira quando ela estava grávida do futuro jogador. Ao filho Gabriel, o caçula, deixou apenas os dois últimos nomes: Fernando Jesus. Terá visto o filho jogar apenas três vezes antes de morrer, em 2011, num acidente de moto.

“Quando fiquei sozinha fui trabalhar na faxina. O Gabriel era pequeno. Naquela época tinha de pegar qualquer serviço que aparecesse”, explicou Vera Lúcia anos mais tarde. “Ela [Vera] foi pai e mãe ao mesmo tempo”, costuma repetir o atacante em cada entrevista, desvalorizando a ausência do pai.

Outra figura importante na vida de Gabriel seria José Francisco Mamede, o seu treinador na infância e adolescência, no pequeno clube Pequeninos do Meio Ambiente, que tem um campo pelado nos terrenos de uma prisão militar. “Ele [Gabriel Jesus] chegou aqui de chinelos com uns oito anos e, no primeiro treino em que participou, marcou um golo depois de driblar três meninos muito maiores”, lembrou o velho técnico ao jornal britânico The Guardian, em Setembro de 2017.

Director desportivo e fundador desta colectividade de futebol juvenil, que “existe para tirar as crianças da rua”, Mamede não se cansa de descrever o seu aluno dilecto: “O menino é uma superestrela. Parece que a bola o procura quando está na área. Está sempre no lugar certo, na hora certa. Foi sempre assim”.

Aqui, nestes campos de terra batida, Gabriel iniciou a sua educação futebolística. “É em campos de terra assim que os meninos aprendem a controlar a bola”, defende Mamede. “O futebol é simples. Você não precisa complicar. Estes campos desenvolvem um menino para ter um raciocínio rápido, precisam ser capazes de prever onde a bola vai chegar e para onde vai depois o passe. Então, ele vai desenvolver um controlo muito melhor do que se jogasse apenas em relvado artificial”.

O lado certo da vida

Debaixo da alçada de Dona Vera e do "seu" Mamede, Jesus caiu do lado certo da vida no Jardim Peri. “Morar num bairro como este te dá chance de ver tanto o caminho certo quanto o caminho errado. Graças à dedicação da nossa mãe, escolhemos o certo”, admitiu Felipe, irmão de Gabriel, à revista brasileira Veja. Ele e os dois outros irmãos tiveram de ir trabalhar aos 12 anos para ajudar a mãe. O mais novo foi poupado e pôde correr atrás do seu sonho.

Está-lhe eternamente grato. Quando Dona Vera lhe enviou uma mensagem a felicitá-lo pela chamada para a Rússia teclou de volta: “Obrigado por fazer eu realizar o meu sonho de criança. Te amo muito. Não sei o que seria de mim sem você”.

“Ela [Vera] foi a zagueira [defesa central] mais difícil que tive de enfrentar”, brinca Gabriel, sempre que lhe perguntam sobre a sua infância. Hoje é um exemplo para o Jardim Peri que visita sempre que tem oportunidade. Mesmo depois de se tornar um herói no Palmeiras, voltava sempre para ver os amigos depois dos jogos. É um modelo e um exemplo. Tem orgulho nas suas origens e foi aqui feliz.

“O Gabriel é a inspiração de Peri, é um espelho. As crianças olham para ele e pensam: ‘O camisa 9 da selecção saiu do meu bairro”, garante Fabinho, amigo de infância do jogador, um dos que o acompanhou nos primeiros tempos em Manchester.

No bairro há um mural com a imagem de Gabriel Jesus e uma inscrição: “Eu posso deixar Peri, mas Peri nunca me vai deixar”.

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