O Estado fora da lei

Uma busca muito superficial permitiu detectar, apenas numa semana, dezenas de elevadores sem inspecção em imensos tribunais.

Pergunto-me se o primeiro-ministro, António Costa, e a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, quando, em Janeiro deste ano, foram ao Tribunal de Sintra, com a pompa do costume, fazer o balanço do projecto “Justiça + Próxima”, saberiam que ali ao lado, no Tribunal de Cascais, pertencente à mesma comarca, os elevadores que servem centenas de pessoas todos os dias estavam a funcionar sem inspecção. Provavelmente não. Se soubessem talvez devessem mudar o nome do projecto para “Justiça + Insegura”.

O assunto é mais sério do que parece. Uma busca muito superficial permitiu detectar, apenas numa semana, dezenas de elevadores sem inspecção em imensos tribunais. Há também elevadores com papéis colados a dizer “fora de serviço”, mas que passam o dia para baixo e para cima a transportar pessoas.

O Decreto-Lei n.º 320/2002 contém as regras de manutenção dos ascensores, que se aplicam também nos edifícios públicos. Por óbvias razões de segurança, é obrigatório realizar inspecções periódicas de dois em dois anos, cujo resultado deve estar afixado e visível no interior do equipamento. A competência para inspeccionar é das câmaras municipais e a obrigação de realizar as inspecções e manter as condições de segurança é do proprietário das instalações e da empresa de manutenção contratada. A violação das regras constitui contra-ordenação, punível com coima entre 250 e 5000 euros por cada equipamento e pode mesmo determinar a selagem dos ascensores não certificados.

Como é normal nestas coisas, as regras parecem todas inúteis, até ao dia em que acontece um acidente e os responsáveis começam todos a apontar o dedo uns aos outros. Infelizmente, o ano passado foi fértil em tragédias que nunca iam acontecer. Não se pense que é impossível um acidente com um elevador. Trabalhei há uns anos num tribunal (no estrangeiro) acabado de construir com dinheiro da União Europeia, em que um dos elevadores teve uma falha e caiu menos de um metro, mas foi suficiente para causar ferimentos graves na coluna de uma funcionária.

Os edifícios onde se encontram instalados os tribunais portugueses pertencem ou estão arrendados ao Estado e a gestão dos seus espaços e equipamentos compete aos diversos departamentos do Ministério da Justiça. É pois essencial que se perceba por que é que chegámos a este ponto de negligência e quem se responsabiliza não só pelas consequências em caso de um eventual acidente, mas também pelo possível pagamento de coimas e selagem de equipamentos.

Os tribunais são espaços de prestação de serviços púbicos, onde trabalham milhares de juízes, procuradores e oficiais de justiça e onde se dirigem diariamente milhares de advogados, solicitadores, agentes de execução, peritos, intérpretes, testemunhas e outros intervenientes processuais que os frequentam diariamente. Não é de esperar que o Estado não dê o exemplo de cumprir as leis que impõe aos outros. É imoral.

E isto é apenas a ponta do iceberg. Se começarmos a escavar mais um pouco vamos encontrar rapidamente muitas outras áreas de regulamentação obrigatória em que há negligência e incumprimento. Muitos mais casos em que o Estado está fora da lei.

O recente documento do Ministério da Justiça, Plano Estratégico Plurianual de Requalificação e Modernização da Rede dos Tribunais, tem uma passagem muito interessante, que merece ser reproduzida: "O direito a um ambiente seguro nos tribunais é condição necessária à realização de Justiça. É um direito de que são titulares todos os que regular ou ocasionalmente frequentam o espaço do tribunal e a sua fruição corresponde às expectativas comuns e legítimas de quem está num espaço de Justiça. Tem ínsita a garantia da vida e da integridade das pessoas e do próprio edifício, mas convive intimamente com uma dimensão de paz, de tranquilidade e de serenidade geradoras do equilíbrio, apanágio da Justiça."

É isso mesmo. Agora só falta mesmo o Ministério da Justiça fazer o que prega.

Até lá, todos os órgãos relevantes na gestão dos tribunais têm de fazer a sua parte. Os que não podem resolver, exigindo e denunciando; os que têm de resolver, fazendo. E as pessoas que se certifiquem que os equipamentos estão inspeccionados e em segurança e reajam, inundando os livros de reclamações dos tribunais e as câmaras municipais de queixas e participações.

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