O homem da sombra que Iluminou a música portuguesa

Ricardo Camacho, o produtor, compositor e teclista da banda Sétima Legião era mais da sombra, das ideias, de perceber como é que o todo funciona para tentar fazer sobressair o particular.

Não era um cantor dotado, nem um malabarista da guitarra ou um carismático ícone da música pop-rock. A sua acção era mais subtil, talvez menos reconhecível pela maioria, mas tantas vezes mais importante do que aqueles sobre os quais incidem os holofotes. Ricardo Camacho era mais da sombra, das ideias, de perceber como é que o todo funciona para tentar fazer sobressair o particular.

Com as claras e devidas distâncias de contexto e de alcance, foi talvez um dos agentes da música feita em Portugal que mais se aproximaram daquilo que Brian Eno representa para a arena global da música popular — alguém com profunda consciência do que o rodeava (não apenas da música do passado e presente, mas também das condicionantes socioculturais), sabendo transformar esse conhecimento em informação musical, através do diálogo atento e generoso com os outros. 

É verdade que, esta quarta-feira, dia em que morreu, é acima de tudo lembrado como o teclista da Sétima Legião. Mas nitidamente foi muito mais do que isso. O traço de generosidade que todos os que com ele privaram reconhecem não era uma condição apenas entre amigos ou algo que marcou a sua actividade médica. Era bem visível na forma como se relacionava com a música, seja no papel de divulgação na rádio, no de A&R da editora Valentim de Carvalho, na experiência editorial Fundação Atlântica ou quando produziu, em alturas muito criativas, uma série de nomes essenciais (GNR, António Variações, Anamar, Xutos & Pontapés, Pop Dell’ Arte) que ajudam a perceber o que foi o Portugal pós-25 de  Abril a tentar apanhar o comboio da modernidade na cultura popular.  

Na altura em que a Sétima Legião lançou o single de estreia Glória, recordo-me de o ouvir em entrevista na rádio. Dizia-se orgulhoso por sentir que, de repente, em Portugal, existia uma série de grupos (da Sétima Legião aos Croix Sainte, dos Heróis do Mar aos GNR) que não só podiam ombrear com o que de mais estimulante acontecia no universo anglo-saxónico como até superá-los pela singularidade que alguns encerravam. Essa ligação entre o global e o local e aquilo que eram as especificidades de Portugal nunca a perdeu ao longo dos anos.

O magnífico primeiro álbum da Sétima Legião (A Um Deus Desconhecido de 1984) foi por ele produzido. Depois tornou-se membro efectivo do grupo. Não custa perceber que para os membros mais novos funcionava como a voz afectuosa da razão. Da mesma forma que é perceptível que essa ligação entre a pop, o pós-punk e a música de raiz tradicional portuguesa que o grupo viria a abraçar teve nele um defensor. Nunca perdeu essa marca. Por um lado, a atenção ao que de mais contemporâneo acontecia, por outro, a curiosidade pelo perene.

Foto
Ricardo Camacho Marilyn Marques/arquivo

Foi assim que acabou por se transformar numa das personalidades mais relevantes para a revitalização da música feita em Portugal numa altura de grande afirmação da mesma — os anos 1980 —, acabando por marcar a existência de muitas pessoas que nem saberão quem ele é. Às vezes é assim. Tem-se uma ideia, ela é concretizada e com essa acção faz-se acontecer coisas à nossa volta, influenciando outras existências. Ricardo Camacho foi uma dessas pessoas inspiradoras. A sua actividade pode nem sempre ter sido visível, mas mesmo na sombra fez brilhar a música portuguesa como poucos.

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