Espaço (em) aberto

Na arquitectura participam muitos agentes, desde o empreiteiro até ao trolha, passando pelo vereador e proprietário, sem esquecer os técnicos e os moradores. Por isso é redutor cingir a apenas estes dois últimos o momento da “participação”.

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Matthew Ansley/Unsplash

A arquitectura é nitidamente uma prática colectiva, de carácter invariavelmente social. Teimar em afirmar este facto seria como manifestar-se para reivindicar que as batatas são tubérculos (quando o sensato seria simplesmente cozinhá-las e comê-las). Na arquitectura participam muitos agentes, desde o empreiteiro até ao trolha, passando pelo vereador e proprietário, sem esquecer os técnicos e os moradores. Por isso é redutor cingir a apenas estes dois últimos o momento da “participação” (tanto como ignorar as possibilidades que pode trazer o diálogo com os restantes actores). Para fazer acontecer, precisamos que todos eles se relacionem de maneira inteligente, porque o poder nunca reside numa única pessoa ou instituição: circula entre todos nós e activa-se colectivamente quando encontramos pontos em comum. O desafio é criar pontes, também com aqueles com quem não nos entendemos, e construir plataformas que nos permitam usar bem a nossa democracia.

Vejam se não é assim. Como diz uma personagem dessa série/tratado de sociologia urbana que é The Wire, “all the pieces matter”. Às vezes muda um proprietário e recuperar uma ilha devoluta e atrair novos moradores passa a ser uma possibilidade, como aconteceu recentemente num caso no Bonfim, onde o Habitar vai acompanhar a Junta de Freguesia, que lidera o processo de reabilitação. Outras vezes, o que muda é a relação entre os moradores, como naquela ilha na Lomba em que a solução para a casa de banho da D. Fernanda passava por intervir em todas as casas, condição necessária ao financiamento mas infelizmente inacessível naquela altura aos senhorios. Outras vezes é uma proprietária a mudar as regras do jogo, como quando a Andreza, com o intuito de inserir a sua ilha no mercado a rendas acessíveis, aceitou a nossa proposta de organizar um concurso de ideias para escolher a melhor solução de maneira transparente, atraindo as instituições para qualificar e credibilizar o processo.

Este último processo serviu-nos para ilustrar como podemos ser mais e melhores. Como arquitecto, estou feliz pela aprendizagem experimentada pela Andreza, que se tem revelado uma feroz crítica capaz de identificar nas propostas apresentadas soluções para as patologias surgidas nas outras casas que entretanto tinha recuperado. Como cidadão, só vejo vantagens no envolvimento da Junta de Campanhã, da Direcção Municipal de Urbanismo da CMP e do IHRU: graças a eles, entre a proprietária e os 14 concorrentes não existiu um simples caderno de encargos, mas uma ideia de cidade. Como coordenador do Habitar agrada-me que bons escritórios comecem a trabalhar também deste lado da linha. Se a ilha da D. Fátima já contava com o apoio da BAAU, a MEROOFICINA — premiada pela proposta “espaço (em) aberto” — aspira agora a fazer parte de um processo que permita à Andreza aceder a um financiamento de qualidade, aos moradores a casas bem construídas e aos portuenses a mais uma área qualificada da cidade.

Dizia Vergílio Ferreira: “Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo.” Durante os longos meses do concurso apercebemo-nos de que há mais pessoas e instituições com as quais podemos criar uma gramática comum. “Criar oportunidades, desenhar o nosso futuro e aprender passo a passo”, diz a Andreza. “Juntar coisas que antes estavam separadas”, costumo dizer eu. “Encontrar a harmonia das partes dissonantes”, respondeu-me Helena Roseta na inauguração da exposição do concurso no Mira Fórum. Há muitas maneiras de dizer o mesmo: que o desafio é passar das práticas às políticas, consolidando e alargando este “espaço”, também em aberto, para que caibam todos, especialmente os que hoje estão fora. Dona Fernanda, não me esqueço: ainda lhe devo a sua casa de banho.

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