"O lugar dele já ninguém o compõe." Como sobrevive a fé ao mistério da morte do padre

Marco Brites tinha 38 anos. Foi encontrado morto numa praia, a duas dezenas de quilómetros de casa. A população não acredita em suicídio e até existir uma explicação o clima de desconfiança mistura-se com o luto na paróquia da Maceira.

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O desaparecimento do padre foi dectectado pela população que alertou as autoridades Daniel Rocha
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A festa da vila decorreu ao lado da igreja e o luto não foi esquecido Daniel Rocha
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Até que se saiba a verdade permanece a desconfiança entre a população Daniel Rocha
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Maria Almeida está sentada numa mesa do café que fica junto à igreja da paróquia da vila da Maceira, em Leiria. É manhã de sexta-feira e no largo ali mesmo ao lado começam a ser montadas as pequenas tascas para os festejos do aniversário da vila nesse fim-de-semana, que faz 501 anos. Os trabalhos de preparação correm a contra-relógio, mas o clima de festa esconde-se no luto pelo pároco, desaparecido no dia 6 de Junho. Ainda em segredo de justiça, a morte de Marco Brites, de 38 anos, permanece um mistério.

A paróquia, com uma forte tradição religiosa, tenta manter-se unida num clima onde paira a desconfiança com palavras proibidas e perguntas por responder. “Eu não quero ser vista nem achada. Para mim acho que não se fazia a festa”, opina Maria Almeida. Com 68 anos, Maria é a responsável pela limpeza nos espaços paroquiais da freguesia. Conhecia bem Marco Brites, que estava há quase dois anos na vila. “É tudo muito recente. É uma falta que se nota muito. Encheu-se a igreja de gente com esta tristeza toda.”

Marco Brites foi encontrado morto na praia das Valeiras, a sul de S. Pedro de Moel (localizada a cerca de 25 quilómetros a oeste da freguesia da Maceira). Foi encontrado por um pescador, mas não tinha consigo qualquer identificação ou objectos pessoais. O telemóvel, carteira e chaves do carro seriam encontrados em casa. Ninguém sabe como chegou até à praia, a cerca de 40 minutos de distância da sua residência.

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A última mensagem trocada foi com um dos responsáveis pelo grupo dos escuteiros da Maceira. Na noite anterior ao seu desaparecimento disse que tinha de “resolver um assunto delicado” e que por isso não poderia comparecer à reunião agendada. No dia seguinte ninguém sabia dele. A sua proximidade e agenda preenchida rapidamente lançaram o alarme entre a povoação, que estranhou imediatamente a ausência do pároco.

“Foi aqui a Rosa que me telefonou”, conta Maria, fazendo sinal para a dona do café A Barroquinha, que limpa o balcão das marcas deixadas pelas chávenas dos clientes. Maria continua. “Perguntou-me: ‘Sabes do padre Marco? Ninguém sabe dele, não se sabe dele’”, recorda, a um ritmo mais acelerado, recuperando a ansiedade que marcou o dia do desaparecimento do pároco.

“A primeira coisa que pensei foi que poderia estar no quintal”, acrescenta, explicando que Marco Brites gostava de se dedicar aos trabalhos de cultivo nos espaços verdes da casa paroquial. “Já procuraram, já procuraram tudo”, responderam-lhe do outro lado do telefone. “Começou a juntar-se tudo por aqui e entretanto lá chegou a notícia.” O cruzamento da fotografia de Marco Brites, entretanto enviada às autoridades, com a do corpo encontrado, permitiu confirmar a identidade. “Começou tudo a chorar.”

O que aconteceu? Ninguém sabe

“Estava aqui numa actividade excelente, bem-disposto. Acabaram com ele. Quem, não sei. Oxalá se saiba”, vinca Maria. O choque, ainda recente, lembra que “estas coisas quando acontecem não acontecem só lá longe”. “O lugar dele já ninguém o compõe”, lamentou, explicando que o vazio deixado por Marco Brites é insubstituível.

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Fátima Paiva trabalhava com Marco Brites na organização da festa paroquial Daniel Rocha

Rosa mantém-se atrás do balcão. Apesar das mesas estarem vazias, repete que não tem tempo para falar e que se o tivesse não teria nada para dizer, enquanto se agita entre tarefas.

Crime ou suicídio? Nenhuma das palavras é pronunciada, mas a tese de suicídio é rejeitada pela maioria da população. Fátima Paiva, que integra a organização da festa paroquial deste ano, era uma das pessoas que dividia com Marco Brites a preparação dos festejos. “Não acredito muito nessa versão [do suicídio]”, partilha Fátima, apesar de admitir que “pode ser uma hipótese como outra qualquer”.

As outras suposições não são ditas em voz alta. “Há várias especulações. Falam de muita coisa, não vale a pena estar a dizer”, continua. A proximidade com o edifício da igreja e da casa paroquial não deixa esquecer o luto. "A festa é realizada como uma homenagem. Era isso que ele iria querer. Ele dá-nos força para estar aqui", justifica Fátima, que integra a tasquinha ligada à paróquia. 

A vivacidade do padre Marco e as condições nas quais foi encontrado adensam o mistério. À data, o capitão-tenente da Polícia Marítima da Capitania da Nazaré, Paulo Agostinho, informou que “não foram encontrados indícios de crime", que a vítima "nem tinha ferimentos” e que teria estado pouco tempo dentro de água. Desde então não se soube muito mais. Os resultados preliminares da autópsia foram “inconclusivos” e a casa paroquial, localizada no lado oposto à igreja, continua fechada. Colada à porta de madeira, uma folha de papel branca avisa que o acesso é proibido.

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A vila da Maceira tem cerca de 10 mil habitantes Daniel Rocha

É enquanto olhamos para ela que somos interrompidos por uma mulher na casa dos 70 anos que pergunta, de olhar desconfiado, se somos dali. Não diz bom dia, nem boa tarde. Sem querer ser identificada, acredita que “foram uns malandros que lhe fizeram isso”. “Só espero que tenha sido alguém fora da freguesia.” Razões, não as consegue encontrar.

“É muito natural que toda a gente se interrogue. Há muitas sensações que se misturam no coração das pessoas. Algum receio ou a sensação de ter alguma culpa por isto, de se perguntarem se podiam ter sido previdentes. Uma coisa ou outra está sobre a mesa, porque não sabemos. Em qualquer dos casos, seja suicídio ou homicídio, permanece sempre a pergunta de como foi possível com este padre a quem a gente tanto queria bem”, afirma Margarida Monteiro, fundadora da associação religiosa local, a Nascentes de Luz.

Margarida recebe o PÚBLICO no seu jardim. Conhecia bem Marco Brites e acredita que a paróquia só conseguirá a serenidade quando compreender o que aconteceu. “Não sei se abala a fé, sobretudo se entendermos como fé aquilo que nos liga a Deus. Até porque, nestas coisas, onde é que vamos encontrar resposta? O que é que Jesus Cristo fez para lhe acontecer o que lhe aconteceu? Claro que tanto pode abalar como pode aprofundar”, interpreta Margarida.

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Enquanto fala reflecte pausadamente sobre as palavras e toma uma decisão: “A fé é abanada, mas não é abalada.” “Dói. A gente não sabe o que aconteceu”, lembra emocionada. “Estas coisas podem acontecer em qualquer sítio. A maldade das pessoas, a fraqueza, continuam a existir”, lamenta.

Uma paróquia activa

“Comparada com as paróquias vizinhas sente-se uma maior vivacidade na Maceira, um maior número de pessoas envolvidas na vivência da fé”, analisa Jorge Guarda, também ele sacerdote e que com Marco Brites celebrava a missa dominical na vila com cerca de dez mil habitantes. Conhecia Marco desde os tempos do seminário. Foi um dos primeiros padres ordenados pelo agora cardeal António Marto.

Jorge recorda-se ainda desse dia. Explica que a povoação “tem características diferentes do que acontece nas outras paróquias vizinhas, como a Marinha Grande e Pataias” muito devido à “tradição que as famílias imprimiram” e por ter tido bastantes sacerdotes naturais dali. “Tudo isso foi uma sementeira que deu alguns frutos que persistem.” E é dessa proximidade que resulta a dor intensa que a morte do padre deixou.

Segundo Margarida Monteiro, “Marco descobria onde estava uma pessoa que tinha capacidade para aquele ou outro sector. Quer essa pessoa fosse à missa ou não. Isso a ele não lhe interessava”. “É verdade”, confirma Ema Gomes, natural da Maceira. “Ele chamava até pessoas divorciadas e que voltaram a casar, o que era uma das coisas mais controversas. Era ele próprio a convidar as pessoas para virem à igreja. Fez com que desconstruísse um bocadinho a ideia mais conservadora [que as pessoas tinham]. Conseguiu meter as coisas a fluir, de forma mais simples. O grande poder dele era ser apaziguador.”

“Acho que toda a gente ficou em suspenso. A vida, claro, continua. Toda a gente vai trabalhar no dia seguinte. [A vida] não pára para quem fica. Mas fica um espaço em branco por preencher e é isso que levanta muitas questões na vida e fé das pessoas”, conclui Ema. Mas isso não tem afastado ninguém. “A missa do sétimo dia encheu. Transbordou o funeral, onde há muita curiosidade mórbida. Mas na semana a seguir, em que não houve todo este aparato mediático, a missa também encheu, o salão estava completamente a transbordar com pessoas na rua.”

Até se saber a verdade, a desconfiança continua. Ema Gomes recorda um episódio recente. “Estávamos na festa a tirar umas medidas às estruturas. Entretanto um carro passa uma vez, passa duas vezes e passa uma terceira vez e foi ver quem lá estava. Só quando percebeu que éramos nós é que a pessoa ficou descansada.”

“É preciso que a polícia examine o que está nos computadores e nas chamadas telefónicas, porque a última mensagem que enviou foi a dizer que tinha um assunto delicado para resolver”, avalia o padre Jorge Guarda. “Possivelmente estará aí a chave para compreender o que se passou.”

O próximo pároco da vila foi indicado na semana passada. Será Cristiano Saraiva, que terá a ajuda do padre Lucas Mendes como vigário paroquial. E a dupla já tem uma enorme tarefa pela frente: ajudar a sarar as feridas que a morte do seu antecessor mantém abertas. 

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