Sinal de alarme

Aquilo que era um activo não-tóxico e uma ferramenta que dava ao Novo Banco a oportunidade de reconquistar protagonismo dentro da fotografia foi-se esboroando com o passar dos anos pós-resgate do BES.

Deste a queda do Grupo Espírito Santo, em 2014, que o legado da sua marca mais conhecida, o BES, passou a estar associado a uma palavra: tóxico. O “veneno” lançado por este banco fez, como se sabe, muitas vítimas, lesados, enganados, ludibriados e ofendidos. Certo é que o BES não deixou apenas polémicas e activos tóxicos, relegados para o “banco mau”. Do património cultural que estava reunido na BESart – Colecção Banco Espírito Santo, a colecção de fotografia contemporânea emergiu como a “jóia da coroa” e passou para a esfera do Novo Banco. Afinal, a operação de marketing e comunicação que pretendia estabelecer o BES como o principal “mecenas da fotografia em Portugal” deu frutos.

Num país onde os artistas se habituaram à míngua do circuito dos coleccionadores do costume e dos raros investimentos institucionais, o surgimento de um comprador de peso animou o exíguo mercado dedicado à fotografia. Foi criado o prémio BESPhoto (para artistas consagrados) e o BES Revelação (para artistas em início de carreira).

Em 2008, quatro anos depois do início da colecção de fotografia, sob a orientação (e gosto) da coleccionadora Alexandra Pinho, foi revelada no Museu Berardo, em Lisboa, a primeira mostra do que foi sendo reunido. O que literalmente se descobriu nessa altura – e o mais que ficou plasmado num volume em jeito antológico (!) editado por ocasião da exposição O Presente: Uma Dimensão Infinita – foi a certeza de que passava a existir em Portugal uma colecção de fotografia contemporânea relevante (em quantidade e qualidade), capaz de isolar, problematizar e pôr em contexto os intrincados usos artísticos da imagem fotográfica das últimas décadas. Do que se conhece de outras instituições públicas e privadas, Portugal não tem nada parecido. Não estando povoada por ícones, está bem recheada de obras referenciais de uma vasta panóplia de artistas, num fresco a partir do qual é possível percorrer tendências, modas, gostos, inclinações e experimentações num suporte de coerência difícil e pouco dado a visões de conjunto. Inclui também, e essa é uma das suas maiores forças, muitos artistas emergentes portugueses, que através da colecção passaram a ter o seu trabalho em diálogo com alguns dos maiores nomes da fotografia a nível mundial.

Todavia, aquilo que era um activo não-tóxico e uma ferramenta que dava ao Novo Banco a oportunidade de reconquistar protagonismo dentro da fotografia foi-se esboroando com o passar dos anos pós-resgate do BES. Órfã de liderança curatorial e manietada por uma conjuntura empresarial que passou a ter de dar resposta a outros desafios, a colecção congelou as compras e passou a modo de gestão. Daí até ao desleixo, à inépcia e à desconsideração foi um passo pequeno, como prova o incidente com o sistema anti-fogo relatado nestas páginas. Para além disso, nestes últimos quatro anos, a valiosa colecção de fotografia do Novo Banco, que podia ser um dos principais pólos de dinâmica e produção fotográfica contemporânea em Portugal, foi sendo esvaziada de saberes, o mesmo é dizer de pessoas conhecedoras da colecção que podiam ajudar a dinamizá-la e torná-la viva.

Se um incidente com esta gravidade (pó anti-fogo a cair por cima de obras) acontece na caixa-forte de um espaço especialmente concebido para albergar uma colecção de fotografia, o que acontecerá no Convento de S. Francisco, em Coimbra, um edifício erguido em 1602, para onde deve ir morar a colecção? Sinal de alarme.

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