A subalternização do feminino na História

As abordagens feministas às ciências sociais e humanas revelam que todas as formas de conhecimento são indissociáveis dos contextos históricos da sua produção. O desenvolvimento de uma perspectiva feminista a partir da década de 1970, sobretudo nos contextos norte-americano e britânico, deve ser entendido como parte das profundas transformações teóricas, práticas e políticas do período, marcadas pela crescente centralidade da questão de género. Mas tais mutações sociais não tiveram o mesmo impacto noutros lugares.

Por exemplo, em Portugal, o pensamento feminista e as enormes mudanças da condição feminina (jurídicas, sociais ou políticas) da década de 1970 pouco se fizeram sentir no ensino e na escrita académica de então. A situação política desse período poderá ser uma das explicações. A mudança de regime, a politização da sociedade civil, a redefinição de liberdades e direitos e a consolidação da democracia, assim como a própria reconstrução do ensino levaram a que o feminismo vivido em Portugal tentasse assegurar direitos básicos de igualdade jurídica, até aí inexistentes, e a que à proposta feminista faltasse espaço para desafiar as formas de conhecimento vigentes.

Quando estudei História e História da Arte em Lisboa, na década de 1990, não me confrontei com abordagens de género à História. Nunca ouvi os nomes de Joan Scott ou de qualquer das muitas historiadoras e historiadores da arte que, há pelo menos duas décadas, repensavam e enriqueciam estas disciplinas. Mas, mais relevantes do que não mo terem ensinado foi o facto de eu não ter reparado nisso. Não tive consciência de como o conhecimento que me era transmitido era indissociável de uma sociedade dominada pelo masculino em todas as esferas de poder – político, religioso, económico, da comunicação social – e também nos lugares onde o conhecimento histórico era produzido, da universidade aos espaços de exposição. Só em Londres, para onde fui estudar pouco tempo depois, me confrontei com um contexto académico em que as abordagens feministas estavam já vulgarizadas.

Nas últimas décadas, muitas coisas mudaram. Globalmente, deu-se um enorme desenvolvimento dos estudos de género e feministas, tal como se deu a afirmação das teorias queer. Mas as diferenças entre contextos nacionais continuam a subsistir. Tenho alunos de doutoramento que, ao longo do seu percurso, nunca se confrontaram com estas abordagens. Tal como continuo a constatar como em Portugal a História e a História da Arte são mais resistentes às abordagens de género do que as outras ciências sociais e humanas. As abordagens de género à História tendem a estar concentradas em núcleos de investigação específicos, ou em disciplinas ou revistas temáticas, às quais se dedicam “algumas” especialistas. Não são ainda intrínsecas ao conhecimento em geral e transversais à disciplina.

E fora das universidades? Nos livros escolares, nas salas de aula pré-universitárias, ou no jornalismo, nas exposições e museus, ou na produção editorial, a situação portuguesa, em geral, está ainda longe daquilo que acontece noutros contextos nacionais, e beneficiaria com uma maior consciência de género. Todavia, há hoje uma maior diversidade e alguns dos fenómenos mais interessantes de associação entre feminismo e conhecimento dão-se fora do contexto académico. Colectivos de arte feminista que questionam o domínio masculino do conhecimento, da criatividade e da representação através de práticas artísticas, ou associações de mulheres negras feministas que começam a mostrar a sua força. “Descolonizar o conhecimento” significa também “despatriarcalizar o conhecimento”, tomar consciência de como a História que lemos, vemos e aprendemos foi e é marcada por uma subalternização do feminino, menorizado ou tornado invisível. A história do passado é sempre feita no presente. E uma das vantagens do nosso presente está também no facto de se terem multiplicado e diversificado as identidades e os lugares a partir dos quais se produz conhecimento. Agora olhamos para os arquivos do passado e vemos coisas que já lá estavam mas em que ninguém tinha reparado.

Historiadora, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

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