A gargalhada da miúda feliz

A miúda parece ser completamente feliz e as gargalhadas límpidas e estrondosas dela levantam quilos de tristeza de qualquer coração. Nenhum de nós, lá por casa, consegue sequer imaginar que a vida dela pudesse ser qualquer outra coisa.

A miúda nasceu em Inglaterra, cerca de um ano antes de um referendo ter posto o “Brexit” em movimento. Nasceu no país para onde os pais se tinham mudado há algum tempo, aliciados pelos empregos com melhores salários lá e a falta de perspectivas profissionais cá. Não contavam com o “Brexit”, nem sequer com a miúda, que os fez olhar para a vida com outros olhos. Vivermos sozinhos num país estrangeiro é diferente, quando somos só dois adultos ou quando há uma criança que, sem o apoio da família alargada, é completamente dependente de nós.

Enquanto a miúda viveu em Inglaterra, íamos matando saudades dela nas duas ou três visitas anuais e através das vídeo-chamadas diárias que nos deixavam babados e de riso parvo colado à cara só a olhar através de um ecrã para ela e as novidades que ia aprendendo a fazer a cada dia. Depois, no final do ano passado, os pais e a miúda regressaram. Ficámos todos deliciados.

Ela é um bico de obra. A palavra favorita desde há bastante tempo é “não” e adora contrariar-nos, sobretudo quando lhe pedimos beijos. Eu, que na boca dela comecei por ser Pica e agora estabilizei num Patixia típico dos três anos, sou recebida muitas vezes com um “não, Patixia”, assim que abro a porta de casa, para 15 segundos depois ser intimada, com a ajuda de um dedo a apontar o sítio exacto: “Senta aqui, anda brincar.”

Porque, agora que está cá, a miúda passa lá por casa praticamente todos os dias. Depois do infantário, durante a semana, tardes inteiras ao fim-de-semana. Tem demasiada energia para qualquer um de nós, tem manias, e já sabemos de cor o guião do que vai acontecer assim que ela aparece — coisas que preferíamos não fazer, se nos dessem a escolher. Persegui-la à volta da mesa da sala, para a tentar alcançar; fazer corridas no corredor; fazer os mesmos quatro puzzles uma e outra e outra vez; sentarmo-nos no chão rodeados dos “brinquedos”, pequenas criaturas estranhas, como gatas com chapéus e carteiras ou monstros de penachos coloridos na cabeça; e, infalivelmente, ver na televisão quase em loop os mesmos episódios de uma série de animação sobre insectos que ela elege como favoritos e cujo visionamento é acompanhado da descrição (sempre a mesma) do que vai acontecer a seguir.

O segredo para suportarmos tudo isto é que a miúda tem armas secretas. Tem uma gargalhada livre que desarma qualquer mau humor e nos faz atravessar a casa à procura dela quando a ouvimos através das paredes. Tem uma maneira engraçada de falar, incluindo continuar a usar (cada vez menos), alguns vocábulos ingleses, como purple ou monkey ou, quando às vezes se chateia, um no way dirigido a quem quiser ouvir. E ela não anda. Ela salta e corre, ponto. Além disso, no mundo dela, tudo pode ser transformado numa canção, pelo que canta e canta e canta e às vezes inventa músicas que misturam palavras reais e inventadas, com as quais descreve qualquer coisa que lhe tenha acontecido.

A miúda é o nosso antídoto contra a infelicidade. Se o dia não está a correr bem, tento sair mais cedo para ainda a apanhar lá em casa, antes de ela se ir embora com os pais. Se demora um pouco mais a chegar, damos por nós a perguntar: “Então, ela hoje não vem? Não queres ir buscá-la?”

A miúda parece ser completamente feliz e as gargalhadas límpidas e estrondosas dela levantam quilos de tristeza de qualquer coração. Nenhum de nós, lá por casa, consegue sequer imaginar que a vida dela pudesse ser qualquer outra coisa. Que ela vivesse dias aterrorizada sem saber o que lhe ia acontecer a seguir, sem saber onde estavam os pais ou onde iria dormir naquela noite. A miúda que nos faz tão felizes só pode ser feliz.

Foto
Mayte Torres/Getty Images

Todos esperamos que a fragilidade do equilíbrio das nossas vidas se mantenha, para que ela nunca venha a descobrir o que é o outro lado. Porque todos temos demasiada consciência de que o outro lado está a um azar de distância. Que lhe bastava ter nascido num local diferente para, por estes dias, poder estar presa num barco a abarrotar e sem condições, sem saber onde ia ser a próxima morada, porque demasiados lhe recusavam a entrada. Que a experiência de emigração dos pais dela poderia ter sido diferente, feita sem os formalismos necessários, num país como, digamos, os Estados Unidos da América, e que ela poderia estar hoje sozinha, arrancada à família, a partir-nos o coração com o seu choro, em vez de nos salvar a todos com a sua gargalhada.

Só queremos que a miúda possa continuar a ter esta felicidade totalmente livre que apenas existe na infância, durante o máximo de tempo possível. Como qualquer pessoa que ama uma criança deseja. Que tantos dos que nos governam tenham esquecido isto é um mistério incompreensível. Se calhar, não ouvem a gargalhada de uma criança há demasiado tempo.

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