Há um ano trabalhava atrás do balcão. Há uma semana abanou o aparelho democrata americano

É um nome em ascensão no Partido Democrata. Com 28 anos, Alexandria Ocasio-Cortez protagonizou um dos momentos políticos da semana nos EUA ao vencer as primárias para o Congresso. Pelo caminho deixou um veterano, Joe Crowley. Se chegar ao Congresso, tornar-se-á na mulher mais jovem a ser eleita.

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Scott Heins/Getty Images

Na Primavera de 2017, antes de ter acabado com as duas décadas de carreira de Joe Crowley (do Partido Democrata, pelo estado de Nova Iorque) no Senado dos Estados Unidos, e de ter perturbado a mais poderosa máquina política da sua cidade, Alexandria Ocasio-Cortez trabalhava ao balcão de um bar. Tinha ajudado a fundar o Flats Fix, um bar de tacos e cocktails em Manhattan, enquanto questionava o que iria fazer a seguir.

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Na Primavera de 2017, antes de ter acabado com as duas décadas de carreira de Joe Crowley (do Partido Democrata, pelo estado de Nova Iorque) no Senado dos Estados Unidos, e de ter perturbado a mais poderosa máquina política da sua cidade, Alexandria Ocasio-Cortez trabalhava ao balcão de um bar. Tinha ajudado a fundar o Flats Fix, um bar de tacos e cocktails em Manhattan, enquanto questionava o que iria fazer a seguir.

“Eu estava a atender pedidos de ‘brunch’, sem ar condicionado, e pessoas de grupos políticos progressistas andavam a telefonar-me”, afirmou na semana passada numa entrevista.

Já tinha trabalhado na campanha do senador Bernie Sanders (independente, pelo estado do Vermont), mas ele perdeu as primárias para a eleição presidencial. Tinha estado nas manifestações de Standing Rock, onde os nativos norte-americanos contestavam os gasodutos de gás natural que iriam atravessar as suas terras no Dacota do Norte. Tinha trabalhado com os Bronx Progressives [bloco de políticos e autarcas liberais nova-iorquinos fundado em 2009] e os Socialistas Democráticos da América, fazendo lobby no gabinete de Crowley; recebeu aplausos quando este congressista apoiou a legislação da Câmara dos Representantes referente ao programa Medicare for All [sistema nacional de saúde alargado].

Mas em Maio deste ano, encorajada pelos activistas com que colaborava, Ocasio-Cortez (28 anos) inscreveu-se para desafiar Crowley. Tinha muito poucas hipóteses, mas pelo menos era uma forma de construir um movimento político. “Se [o círculo eleitoral] pode ter mais educação, mais organização, mais investimento do que tinha há um ano”, disse à WYNC [rádio pública de Nova Iorque] em Novembro de 2017, “então esta campanha terá tido 100% de mérito.”

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Nas presidenciais norte-americanas, Ocasio-Cortez apoiou Bernie Sanders, mas politicamente situa-se mais à esquerda do que o senador do Vermont DR

Ocasio-Cortez parece agora estar imparável no seu caminho em direcção ao Congresso, concorrendo num círculo eleitoral que atribuiu 78% dos seus votos a Hillary Clinton e no qual os republicanos não estão seriamente empenhados. Se isso acontecer, ela transformar-se-á na mulher mais jovem a ser eleita, por qualquer dos partidos. Até este ano, Crowley nunca tinha sequer estado próximo de perder no 14.º Círculo Eleitoral para o Congresso de Nova Iorque. A reacção dos republicanos à vitória de Ocasio-Cortez abordou essencialmente a derrota de Crowley e como a direcção do seu partido tinha sido derrotada por uma mulher que se intitula socialista.

Era isso mesmo que Ocasio-Cortez tinha decidido que iria fazer – substituir a direcção e a máquina do Partido Democrata em Queens, controladas por Crowley, por uma nova estrutura e um novo eleitorado. Os Justice Democrats e o Brand New Congress, dois dos grupos progressistas que a encorajaram a concorrer, acabaram por formar a sua equipa para a campanha eleitoral. Ela não se sentia inclinada a apoiar Nancy Pelosi, a líder democrata na Câmara dos Representantes, para o lugar de presidente desta assembleia, indicando um dos membros mais à esquerda na Câmara como sendo uma melhor escolha.

“Gostaria de ver uma nova liderança, mas nem sequer sei quais são as nossas opções”, afirmou. “Quero dizer, a Barbara Lee está a candidatar-se? Quando ela o fizer, então chamem-me!”

As posições políticas de Ocasio-Cortez situam-se substancialmente mais à esquerda do que a maioria do seu partido, e mesmo de Sanders. Nos seus cartazes e vídeos de campanha, feitos por amigos dos círculos socialistas de Nova Iorque, pede a abolição do ICE [Immigration and Customs Enforcement, agência de investigação do Departamento de Segurança Interna] e as propinas no ensino superior; e apoia o sistema de saúde Medicare For All, segurança e garantias para os funcionários públicos. Os anúncios também deixam bem claro que ela é uma candidata diferente – uma jovem latina do Bronx, não um homem branco de Queens. Os cartazes, que, nas suas próprias palavras, foram concebidos para parecerem “revolucionários”, surgiam em inglês e espanhol e com a sua face ao centro; o seu vídeo de campanha, que se tornou viral, criado por uma equipa socialista denominada Means of Production [Meios de Produção], começava com ela a dizer “não é suposto que mulheres como eu concorram a cargos políticos” sobre imagens dela a preparar-se para mais um dia num movimentado prédio de apartamentos.

“A única ocasião em que podemos criar algum tipo de mudança substancial é quando conseguimos alcançar um eleitorado insatisfeito e inspirá-lo e motivá-lo a votar”, disse Ocasio-Cortez à revista de esquerda In These Times, numa das muitas entrevistas que concedeu quando, nas últimas semanas, a sua candidatura parecia estar bem encaminhada. “Foi assim que Obama ganhou e foi reeleito, e foi assim que Bernie Sanders conseguiu tão bons resultados.”

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Se chegar ao Congresso, tornar-se-á na mulher mais jovem a ser eleita David Delgado/Reuters

Em entrevistas na véspera das eleições, enquanto Ocasio-Cortez solicitava votos em Queens, disse que a sua campanha começou com militantes de base e descolou assim que os meios de comunicação social de esquerda de âmbito nacional notaram o que ela estava a fazer. Um perfil inicial no Intercept [jornal de investigação online], disse, foi “um momento de viragem”, levando a mais entrevistas e perfis que se iniciavam com a audácia do seu desafio, e depois passavam às suas propostas políticas. Na última semana de campanha, quando deixou por pouco tempo o seu estado para conhecer de perto as condições dos centros de detenção de imigrantes no Texas, já estava a actualizar a revista feminina Vogue acerca de como se estava a desenrolar a sua candidatura.

“O maior obstáculo que as nossas comunidades enfrentam é o cinismo – dizer que o resultado já está decidido à partida, que ninguém se importa, que não vale a pena votar”, declarou Ocasio-Cortez a um grupo de voluntários numa das suas iniciativas de campanha. “Se conseguirmos que alguém se importe, isso já é uma grande vitória para o movimento e para as causas que estamos a tentar fortalecer.”

Por que razão desafiou Crowley? Ela explica: ele era um “democrata executivo”, que recebia mais dinheiro dos PAC [comités de angariação de verbas] empresariais do que de dadores locais – e de empreiteiros que estavam a aumentar os preços da habitação. Ele votara a favor da criação do Departamento de Segurança Interna. Ele votara a favor da guerra no Iraque. Ele votara a favor da PROMESA, a lei que criou um muito odiado comité de bancarrota para lidar com a dívida do território caribenho de Porto Rico.

“O meu avô morreu na tempestade [Maria, que atingiu Puerto Rico em Setembro de 2017], escreveu Ocasio-Cortez no Twitter em Maio. “As vossas leis encerraram escolas e reduziram os serviços públicos quando nós mais necessitávamos deles.”

Nada disso tinha antes parado Crowley, mas Ocasio-Cortez estava convicta de que isto poderia fazê-lo – se ela conseguisse alcançar os eleitores que estavam revoltados com a situação. Os seus colaboradores começaram a avançar para os telefones, contactando milhares de eleitores que não estavam filiados em qualquer dos partidos, informando-os de que precisavam de se registar nos cadernos eleitorais como democratas até seis meses antes das eleições se quisessem votar nas primárias do partido. Utilizaram também a lista de votantes do Partido Democrata, mas a equipa de Ocasio-Cortez achou que a tecnologia aí usada era demasiado antiquada, pelo que construíram a sua própria aplicação e distribuíram-na aos seus voluntários.

A maior arma da campanha de Ocasio-Cortez era ela mesma, pois provou ser uma candidata nata e natural, com uma história de vida interessante e apelativa. Ela foi a primeira a reconhecer que tinha andado por muitos lugares diferentes, desde o gabinete do senador Ted Kennedy e do Instituto Nacional Hispânico até à organização política e à indústria dos serviços. E foi obrigada a isso: a sua família foi duramente atingida durante a crise financeira de 2008.

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Em entrevistas na véspera das eleições, Ocasio-Cortez disse que a sua campanha começou com militantes de base DR

Crowley enfrentou o desafio de forma séria, gastando 1,5 milhões de dólares, mais do que o quíntuplo da sua adversária. Nas suas mensagens de campanha, Crowley denominava-se “Joe de Queens” e enfatizava que a sua influência em Washington o tornava o adversário ideal de Donald Trump.

No único debate televisivo entre os dois, Crowley rapidamente passou à ofensiva, dizendo aos telespectadores que a sua oponente uma vez tinha dito que as leis sobre armas de Nova Iorque não tinham necessariamente de ser utilizadas noutros estados. Este ataque era verdadeiro – Ocasio-Cortez tinha-o afirmado num fórum do Reddit –, mas ela limitou-se a rir, dizendo que ele estava a ser “um ‘troll’ da Internet”, e ele passou à frente do assunto.

Ocasio-Cortez limitou-se a superar Crowley (que muitos jornalistas especializados no Congresso viam como potencial presidente da Câmara de Representantes) nos meios de comunicação social. Um dos seus melhores estratagemas surgiu uma semana antes das primárias, quando um jornal do Bronx organizou um debate dos candidatos e Crowley não podia estar presente. Ocasio-Cortez chegou cedo, apertando a mão aos poucos presentes. 

Crowley enviara Annabel Palma (uma antiga vereadora municipal) em sua representação, apesar de ela de vez em quando reconhecer que não conhecia a posição de Crowley em assuntos relativos ao Congresso. (Palma foi apupada quando afirmou, e correctamente, que Crowley apoiara a mudança da Embaixada dos Estados Unidos em Israel de Telavive para Jerusalém. No dia em que se efectuou a mudança da embaixada, Ocasio-Cortez condenou o “massacre” de palestinianos que protestavam contra a decisão, e escreveu no Twitter que “os democratas não podem continuar em silêncio acerca disto”.) 

A candidata novata estava claramente a suplantar a veterana e experimentada vereadora. Ocasio-Cortez manteve as baterias apontadas a Crowley. No início do debate, antes de lhe dizerem para não se levantar durante as respostas, andou de um lado para o outro no palco e afirmou que a sua candidatura era do Bronx, pelo Bronx, e para o Bronx.

“Alcançámos o coração e a cabeça de todas as nossas famílias. Estamos a lutar por um assumido movimento para a justiça económica, social e racial nos Estados Unidos”, declarou Ocasio-Cortez.

Virou-se e olhou para Palma. “Com o devido respeito”, disse, “sou a única nesta sala que está a candidatar-se ao Congresso.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução de Eurico Monchique