“O movimento #MeToo revelou como as mulheres foram educadas a acomodar o poder masculino em vez de o recusar”

Esta entrevista à Professora Emérita do Instituto de Estudos Avançados na Universidade de Princeton (EUA) contou com a colaboração de três investigadoras portuguesas, Ana Cristina Santos, Anne Cova e Filipa Lowndes Vicente, que têm trabalhado sobre questões de género

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Joan Wallach Scott Brigitte Grignet/Agence VU/Institute for Advanced Study

Joan Wallach Scott (Brooklyn, 1941) é professora emérita do Instituto de Estudos Avançados na Universidade de Princeton, nos EUA. Historiadora de prestígio, nome incontornável na literatura sobre a história de França, tem uma carreira cheia de trabalhos fundamentais, desde Gender and the Politics of History (1988), que assinala agora 30 anos, até The Politics of the Veil (2007). Mais recentemente publicou Sex and Secularism (2017).

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Joan Wallach Scott (Brooklyn, 1941) é professora emérita do Instituto de Estudos Avançados na Universidade de Princeton, nos EUA. Historiadora de prestígio, nome incontornável na literatura sobre a história de França, tem uma carreira cheia de trabalhos fundamentais, desde Gender and the Politics of History (1988), que assinala agora 30 anos, até The Politics of the Veil (2007). Mais recentemente publicou Sex and Secularism (2017).

Ana Cristina Santos — Recentemente, o feminismo beneficiou de uma atenção renovada em razão de iniciativas contra a violência sexual e denúncias no meio artístico e cultural. Como é que acha que os estudos de género e a política anti-sexista podem fortalecer o papel do feminismo, para lá das oscilações de atenção dos meios de comunicação social?
Esta é uma questão importante, sobre o modo como a análise feminista pode contribuir para a compreensão da política do #MeToo. Já existe um conjunto de obras feministas que interrogam as culturas de dominação masculina — o que representam, como operam, que efeitos têm tido. Essa literatura tem sido usada em demasia de forma redutora pelos media. Por exemplo, apresentando as mulheres apenas como vítimas de sistemas patriarcais sem prestar atenção às maneiras complexas através das quais o poder opera na produção de sujeitos e na sua opressão.
Uma das coisas que o movimento #MeToo revelou é como as mulheres foram educadas a colaborar nesses sistemas, acomodando o poder masculino em vez de o recusar. Também revelou as formas através das quais o poder funciona: o sexo e a oportunidade económica estão fortemente ligados. Na minha própria investigação, pensar a partir da psicanálise tem sido útil para compreender as confusas e desafiantes dinâmicas do sexo em todas as esferas da sociedade e ainda para explicar a resistência das sociedades democráticas a mudanças nas expectativas e regulações normativas associadas ao género. Enquanto especialistas nos estudos de género e enquanto militantes que promovem uma política anti-sexista, a questão que hoje nos desafia é como confrontar a crença, profundamente enraizada, de que as diferenças sexuais, tal como são tradicionalmente entendidas, são “naturais”. Que não podem ser interpretadas de modo distinto da forma como sempre o foram.
Como é que a mudança psíquica é alcançada? Porque é que o movimento #MeToo apareceu agora? O que é que levou algumas mulheres finalmente a recusar compromissos com o poder masculino que no passado aceitaram (mesmo que relutantemente)? Qual é a relação entre mudança psíquica e transformação social e política? São estas as questões que nós temos de colocar enquanto pensadoras e activistas feministas.

A.C.S — Um pouco por todo o mundo, a chamada “ideologia de género” tornou-se um foco privilegiado de animosidade para sectores conservadores. A academia e os movimentos sociais ainda não foram capazes de formular um contradiscurso para revelar o carácter alarmista, demagógico e cientificamente insustentável destes argumentos. O que pode ser feito?
A campanha da “ideologia antigénero” liderada pelo Vaticano e pelos grupos evangélicos cristãos tem-se focado no “género” por uma boa razão: este implica uma crítica do sistema naturalizado que eles apoiam, que diz que as definições do que significa ser um homem ou uma mulher estão fixos ou na natureza ou por Deus. Também envolve uma crítica da assimetria ou desigualdade desse sistema e sugere que diferentes definições do sexo são possíveis, como os dados provenientes da História e da Antropologia demonstram claramente. Acho que nós já temos o contradiscurso: a insistência de que o género é uma grelha de inteligibilidade para diferenças de sexo e sexualidade dinâmica. O sociólogo francês Eric Fassin organizou uma “internacional do género” que visa defender a nossa posição e reforçá-la face a qualquer ataque. [Nota: trata-se de uma rede internacional de investigadores que visam enfrentar o problema da crescente perseguição aos estudos de género e da sexualidade um pouco por todo o mundo. Pense-se, por exemplo, no modo como um workshop sobre questões LGBT e asilo político foi “suspenso” na Universidade de Verona.]
Eu acho que os grupos antigénero estão a exprimir uma ansiedade profundamente sentida sobre o que significaria pensar de outro modo sobre as diferenças do sexo. Como argumento no meu novo livro, Sex and Secularism, esta ansiedade está associada a crenças de que a estabilidade política e as explicações da desigualdade no interior das sociedades são legitimadas por referências à imutabilidade do género. Estes grupos acreditam que se os sistemas de género existentes forem questionados a ordem social inteira colapsará. Como lidar com esse medo é um verdadeiro desafio que um argumento racional por si só não poderá resolver.

Filipa Lowndes Vicente — Nos últimos 50 anos, sensivelmente, houve uma ampla produção de pensamento académico e filosófico crítico em torno dos temas do “género”. No entanto, a esfera pública parece alheada dos debates dentro da academia. Como ultrapassar o que parecem ser “linguagens diferentes”?
Não creio que seja possível resolver o hiato entre a produção académica e a opinião pública e não apenas porque o nosso trabalho é demasiado complexo e subtil. Deve-se também ao facto de os actores políticos e os media operarem com binários simplistas enquanto nós os tentamos desconstruir. A forma de o nosso trabalho ser “traduzido” além da academia é através dos estudantes (sendo que nem todos se tornam académicos), que têm a capacidade de olhar para o mundo de formas diferentes, que nós lhes ensinamos, e explicar o que vêem em termos acessíveis a um público mais generalista. O nosso próprio trabalho não é sempre escrito em linguagem técnica e obscura. Podemos intervir em diálogos públicos, explicar o nosso trabalho em fóruns públicos e nas redes sociais. Penso que a ideia de “linguagens diferentes” é um bocado exagerada e assume um contraste nítido entre a academia e o público que não dá o devido valor à política. Dentro da academia, há visões políticas diferentes, tal como há no “espaço público”. Nós escrevemos para enriquecer e aprofundar visões políticas que promovam a igualdade e a justiça social e para auxiliar movimentos políticos que se dediquem a essas causas.

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Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History (Columbia University Press, 1988)

F.L.V. — Por vezes, ignoramos que estamos a produzir discursos a partir de contextos muito diferentes. Nos EUA, o seu texto Gender: a useful category of historical analysis? é um dos mais descarregados artigos de sempre, e um dos que com mais frequência aparecem nas bibliografias recomendadas. Mas em Portugal o seu texto foi traduzido em 2008 por Ana Monteiro-Ferreira na antologia organizada por Ana I. Crespo, Ana. M. Ferreira, Anabela G. Couto, Isabel Cruz, Teresa Joaquim,Variações sobre sexo e género (Lisboa, Livros Horizonte) e aqueles professores, investigadores ou alunos que o usam são os mais diretamente associados aos estudos de género. Podemos ultrapassar estes desfasamentos?
Eu abordei o problema da tradução (os diferentes contextos em que o nosso trabalho é produzido e aqueles a que este é dirigido) em Gender Studies and Translation Studies: ‘Entre Baguette — connecting the transdisciplines (com Luise von Flotow). Aí, argumento que não existe tal coisa como “tradução fiel”, que os conceitos como “género” são apropriados e adaptados para produzir diferentes usos em lugares diferentes. Não há nada a fazer quanto a isso — de facto. É uma coisa positiva e o conceito pode criar um sentido de participação internacional mesmo que lhe sejam dados diferentes usos.

Anne Cova — Há dez anos, a American Historical Review publicou uma discussão dedicada ao seu famoso artigo jmencionado. Nesse fórum escreveu que “a ideia de género, em si própria, é uma questão cujas respostas são sempre dadas de forma parcelar através da investigação de académicos”. Qual a sua opinião sobre a importância de escrever uma história transnacional do género?
Não tenho a certeza de compreender o que uma “história transnacional do género” seria. Significaria dizer que as situações são iguais por todo o mundo? Que mostram ser diferentes, quando comparadas? Qual a razão para este tipo de abordagem global? O meu ponto, no fórum e noutras peças que tenho escrito desde então, é que o género é uma questão sobre o enigma de como as diferenças de sexo estão a ser percepcionadas. É o modo através do qual sociedades e culturas providenciaram uma grelha de inteligibilidade para uma diferença que não tem um significado último, permanente. Por isso, a questão não deveria ser qual a experiência das mulheres nesta ou naquela cultura, neste ou naquele momento da história. Ao invés, a questão devia ser como estão a ser definidos os homens, as mulheres e as relações entre eles e elas e com que finalidades. Em que tipo de crises políticas as normas sobre género são questionadas, redefinidas, protegidas? Que perigos são antevistos na transgressão das identidades sexuais costumárias. Tudo isto pressupõe que o género não é sempre a mesma coisa, definitivamente não é sobre as identidades fixas que nós conhecemos (homem, mulher, masculinidade, feminilidade), antes é sobre algo que está permanentemente a ser construído, defendido, resistido, transgredido. As questões são como, porquê e de que formas.

AC: Uma década após a publicação do seu The Politics of the Veil nos EUA, este foi finalmente traduzido para francês em 2017. Porque acha que demorou tanto tempo a tradução, especialmente se tivermos em conta que a lei da proibição do véu é de 2004?
Ainda que as editoras francesas me tenham dito, então, que já tinham demasiados livros sobre o véu, penso que a razão teve que ver com o facto de o livro ser muito crítico da lei. Eu escrevi sobre o racismo francês (um termo a que continuam a resistir os defensores da laicidade republicana contra o Islão) e ofereci uma leitura psicanalítica das razões para a proibição. Penso que isto foi simplesmente demasiado, mesmo para pessoas que concordavam com algumas coisas que escrevi. Concordo com um amigo francês que disse que, à época (2007-2008), o livro era demasiado radical para republicanos e conservadores mas não suficientemente radical para a extrema-esquerda. As coisas pioraram tanto em França (a islamofobia tão disseminada) que, em 2017, o livro não era nem tão radical nem tão “liberal” como então pareceu ser. 

Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro — Juntamente com outros autores, demonstrou que a “questão do véu” tinha profundas imbricações coloniais, especialmente relacionadas com a Guerra da Argélia. De que modo o estudo das histórias imperiais e coloniais e respectivos legados nos pode ajudar a promover debates mais matizados, menos chauvinistas, acerca do lugar dos “outros” nas sociedades ocidentais?
Como disse atrás, tenho sérias dúvidas acerca da nossa capacidade para influenciar debates públicos que transpiram um ódio visceral e racial em relação aos “outros”. Especialmente quando esses “outros” são antigos sujeitos coloniais, descritos durante séculos como menos civilizados que os seus congéneres brancos e europeus. Isto não quer dizer que se deva abandonar o estudo das histórias coloniais e imperiais, antes que a linha entre o nosso trabalho e a opinião pública não é directa. Tendo por base esse trabalho, podemos intervir em debates públicos, podemos apresentar as nossas conclusões à audiência mais vasta que conseguirmos, mas não podemos almejar produzir o tipo de mudança que me parece terem em mente. Aquilo em que o nosso trabalho nos pode ajudar é a identificar os pressupostos e fissuras dos argumentos políticos que queremos desafiar; pode aguçar o nosso pensamento político e daqueles que consideramos “aliados”. O trabalho académico pode facilitar o trabalho daqueles movimentos e actores que querem produzir uma mudança, mas não pode ele próprio produzir essa mudança.

M.B.J. e J.P.M. — Por que achou que era importante escrever o seu mais recente livro Sex and Secularism, voltando a um tópico que tinha abordado antes? Deveu-se a uma indagação meramente intelectual ou também resultou das pressões do contexto histórico presente?
Por que acham que é sobre um tópico que tinha abordado antes? Eu tinha um capítulo sobre a laicidade no Politics of the Veil mas era tudo, e era apenas sobre França e não sobre os Estados-nações ocidentais em geral. Este livro pretendeu abordar alguns temas hoje particularmente relevantes, especialmente a associação estabelecida entre secularismo e igualdade de género na polémica do “choque das civilizações”. Mas também tinha por objectivo explorar a história do emprego discursivo do secularismo na formação dos modernos Estados-nações ocidentais. Pretendeu ser uma síntese incisiva sobre os modos como a desigualdade de género marcaram presença na construção desses Estados-nações. É nesse sentido que pode ser visto como um exemplo do que Anne Cova chamou “história transnacional” — ainda que eu nunca usasse a expressão, na medida em que é um processo histórico geral que pretendo expor, não um estudo comparativo. Pretendia também criar uma teoria acerca das formas como (para me autocitar, do artigo de 1986) “o género constrói a política e a política constrói o género”.