Histórias de uma cidade contadas à noite num cemitério que é um “Porto em miniatura”

A quarta edição do Open House Porto reuniu mais de 60 edifícios numa rota de acesso gratuito. Seguimos esse roteiro para conhecer o primeiro projecto de Siza Vieira e uma antiga padaria onde hoje se vive e se faz música e fomos ao cemitério de Agramonte, onde se assinalou um dos maiores desastres ocorridos na cidade.

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Construído em 1855 por força de uma epidemia de cólera, Agramonte é o segundo cemitério público do Porto adriano miranda
Basílica, janela, arquitetura, fachada
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Há 130 anos, na noite de 20 de Março de 1888, o teatro Baquet, mandado construir trinta anos antes por um alfaiate portuense com o mesmo nome, na actual rua 31 de Janeiro, na altura rua de Santo António, enche-se de pompa e de público para um espectáculo de benefício ao actor Firmino Rosa, que também actuava nessa noite e para quem revertia a receita.

Monta-se uma peça com vários quadros, incluindo uma ópera cómica, que a pedido dos presentes, por aplauso, foi-se prolongando em sucessivos encores. Num deles, entre mudança de cenários, há uma peça de iluminação que tomba. Já tarde demais grita-se “fogo”. Falham as comunicações com as corporações de bombeiros e as labaredas espalham-se a um ritmo acelerado.

Os que tentam escapar pela saída da rua de Sá da Bandeira têm melhor sorte. Dos que optaram por sair pela então rua de Santo António poucos sobreviveram para relatar aquele que ficou gravado na história do Porto como um dos maiores desastres ocorridos na cidade. Em pouco tempo, o interior do teatro ficou reduzido a cinzas. Morreram cerca de uma centena de pessoas.

Qual a ligação entre este desastre e Agramonte, o segundo cemitério público da cidade, fundado em 1855, que visitámos no âmbito da quarta edição do Open House Porto, que neste fim-de-semana abriu gratuitamente a porta de mais de seis dezenas de edifícios em Porto, Gaia e Matosinhos para um convite à descoberta da arquitectura destas três cidades da mesma área metropolitana? Já lá vamos.

Antes desta visita nocturna que no sábado levou aproximadamente duzentas pessoas ao cemitério situado na Boavista, no roteiro extenso do evento que se prolongou até domingo, fizemos outras duas paragens.

O primeiro projecto

A primeira fizemo-la em Matosinhos, terra natal de Siza Vieira, onde o arquitecto realizou o primeiro projecto: realizou, não assinou, porque na altura, em 1954, ainda com 21 anos, não tinha concluído o curso. Assinou-o na altura o engenheiro Rogério Lobão.

Ao início da tarde, na entrada das Quatro Casas, como é conhecida a encomenda de Manuel Neto, um empresário do sector das pescas, actualmente com 93 anos, havia uma fila que ultrapassava largamente a lotação de 15 pessoas estipulada para a visita comentada por um dos comissários do evento, João Paulo Rapagão. Ninguém ficou à porta.

De inspiração japonesa nos muros de pedra e nas madeiras e de edificação popular portuguesa, como explica o também arquitecto, o conjunto de três volumes e quatro casas, foram construídas de forma a ser o mais funcional possível.

Situada na Avenida Afonso Henriques, onde é montada a maior festa da cidade, o Senhor de Matosinhos, na década de 1950, quando foi construída, foi alvo de controvérsia que se estendeu à esfera popular e a alguma imprensa. “Casinhotos”, foi assim que, de acordo com o comissário, um jornal da época catalogou a obra de Siza Vieira, que só 60 anos depois é que assinou o projecto.

Maria João, 70 anos, filha do proprietário e presente na visita, recorda-nos esses tempos em que o trabalho de estreia do Pritzker deu origem a alguns episódios caricatos. “Fizeram-se músicas que eram cantadas à nossa porta sobre como esta era a casa mais feia do mundo”, conta. Da varanda virada para avenida, construída propositadamente para ser local privilegiado para assistir à romaria do Senhor de Matosinhos, ouviam insultos por parte da população.

Seis décadas depois, Manuel Neto, que em fase de projecto questionou alguma das opções, está numa das divisões a ver televisão descontraído, enquanto passa uma fila de visitantes. Diz-nos João Paulo Rapagão que Siza Vieira lhe dizia que “um dia o tempo é que falaria”.

De “casa mais feia do mundo” passou a ponto de visita obrigatório para estudantes de arquitectura de todo o mundo. “Hoje param para tirar fotografias”, diz-nos Maria João.

No lugar da padaria

Antes de chegarmos a Agramonte, seguimos pela marginal para pararmos na Foz Velha. Na rua de São João da Foz, onde há cerca de cinquenta anos era a padaria do senhor António está hoje uma casa onde se vive e se faz música. Desde que fechou ficou entregue à ruína. Há pouco mais de um ano, a obra de requalificação assinada pelo arquitecto Guilherme Machado Vaz voltou a encher de vida aquele espaço.

Onde era o balcão, virado para a rua, é agora uma cozinha separada da sala por uma prateleira em vidro que deixa passar os raios de sol para o local onde dantes se preparava o pão. Ainda está lá a entrada para o forno. No interior já não se faz pão, faz-se música. Transformou-se aquela área num estúdio onde o proprietário e músico, irmão do arquitecto, trabalha em novas composições e ensaia.

Era naquele antigo forno que Júlia Santos, 61 anos, que toda a vida viveu na Foz Velha, a poucos metros dali, diz que assavam os cabritos no São João. “Na rua era sempre uma festa”, recorda. Ao lado, onde agora está uma loja de artigos de pesca “era um tasco”. Bebia-se num lado, comprava-se o pão no outro. Pão que era levado a casa de muitos dos clientes. “Cheguei a fazer entregas para o senhor António”. A rua “já não é a mesma”, mas vê com bons olhos a renovação.

A história nas sepulturas

Ajuda-nos a arquitectura, através da recuperação de edifícios ou da construção de novos, a contar a história de uma cidade. É também a “arquitectura da morte”, como lhe chama o comissário do Open House Porto, o ponto de partida para se recuperar pedaços do passado.

É o historiador Francisco Queiroz que nos leva por essa viagem. Cerca de duzentas pessoas reuniram-se à noite em Agramonte, pela primeira vez parte do roteiro do evento, para conhecer alguns episódios marcantes da cidade, num espaço que considera um “Porto em miniatura”, por ali se concentrarem tantas histórias.

Construído em 1855 por força de uma epidemia de cólera, é o segundo cemitério público do Porto. Em 1839, na zona oriental da cidade já tinha sido construído o primeiro - o Prado do Repouso, que como Agramonte também é um cemitério romântico.

Era necessário cobrir a parte ocidental da cidade. Os cemitérios privados tinham sido desmantelados. Um dos poucos que sobrava era o da Lapa, o mais antigo. 

Explica-nos o historiador que naquela altura os cemitérios públicos não eram vistos com bons olhos. Seria para onde seguiam os restos mortais das classes mais baixas. Construído o de Agramonte, o Prado de Repouso ganhou outro estatuto. “Como o outro era para os infestados, o do Prado de Repouso passou a ser bom”, explica durante a visita. Só mais tarde é que Agramonte consegue atingir outro estatuto. Hoje é onde estão sepultados alguns dos históricos da cidade como Manoel de Oliveira, Guilhermina Suggia, António Carneiro, Emílio Biel, Júlio Dinis ou Conde de Ferreira.

Saímos da capela de inspiração romântica, inicialmente assinada por Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa, em 1866, e posteriormente ampliada por José Marques da Silva, em 1906, para percorrer as ruas de um dos maiores cemitérios do Porto à procura das histórias nele escondidas com a ajuda do historiador.

Passamos por jazigos luxuosos de torna-viagem, emigrantes regressados do Brasil, que quiseram deixar claro que em vida se tornaram homens de negócios bem-sucedidos. Encontramos o mausoléu de Conde de Ferreira, um filantropo com passado manchado por negócios de escravos, que em vida deixou bem marcada a vontade de exaltar a obra filantrópica, deixando assinado um contrato que proibia a construção de sepulturas mais altas do que a sua - encabeçada por uma estátua imponente com a sua figura -, numa determinada área em torno do seu jazigo. Continua ainda hoje, desde que faleceu em 1866, a ser a construção mais alta naquele sector do cemitério, já na parte que pertence à Ordem da Trindade. Ficamos ainda a conhecer algumas sepulturas da autoria de Soares dos Reis e dos Teixeira Lopes, pai e filho.

Durante o caminho esbarramos com uma pilha de destroços pousados no topo de uma arca tumular de dimensão considerável, com duas pegas em cada uma das laterais. Por cima dos destroços há uma coroa de flores desenhada no ferro. Em frente a essa arca existe uma área onde já estiveram várias lápides cercadas por uma grade feita por um mestre fundidor que lá deixou o nome assinado: Manuel Luís Centieiro, proprietário de uma fundição na rua da Vitória.

Hoje só sobra uma lápide. Pertence a Luciano Gomes de Barros, estudante do liceu quando faleceu. Este jovem era uma das vítimas mortais do incêndio no teatro Baquet e é a pilha de destroços o que sobrou do interior da sala. É ali, em Agramonte, que estão os despojos mortais das vítimas do incêndio, que ganhou proporções também porque as comunicações falharam. “É uma história que não nos parece muito estranha nem muito diferente de outra que aconteceu recentemente”, é a afirmação que o historiador deixa no ar.

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