Depois do passado sangrento, Fafião tenta reconciliar-se com o lobo

O Art Nature Fest vai realizar-se pela primeira vez na aldeia comunitária, na sexta-feira e no sábado, e dá protagonismo ao lobo ibérico, uma espécie que, no passado, foi o principal alvo a abater da população, mas hoje está em perigo e precisa de ser defendida.

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O fojo do lobo, com duas paredes graníticas de dois metros e meio de altura que se unem para rodear um fosso circular com quatro metros de profundidade, domina a paisagem de Fafião, aldeia na orla do Parque Nacional da Peneda-Gerês, pertencente ao concelho de Montalegre. A estrutura simboliza ainda hoje a guerra sem tréguas entre o homem e o lobo ibérico que perdurou desde a sua edificação, em finais do século XV ou inícios do século XVI, até à última vez em que a população realizou a última caça ao lobo, utilizando o fojo para o armadilhar, em 1948, diz ao PÚBLICO Lino Pereira, presidente da Vezeira, associação fundada há oito anos.

Os factos e os mitos desse episódio, que envolvem Domingos Rebelo, “um caçador exímio”, três lobos mortos e uma “grande festa” que ditou o nascimento de 20 crianças nove meses depois, vão ser narrados nos Contos do Lobo, um dos momentos da primeira edição do Art Nature Fest, acrescenta o dirigente.

O evento, agendado para sexta-feira e para sábado, visa desfazer o “mito de que o lobo é mau”, ainda existente no seio da aldeia, e chamar a atenção para a necessidade de se preservar uma espécie em perigo de extinção no país, segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). “Fafião foi uma das aldeias onde, a nível nacional, o lobo e o homem sempre tiveram uma guerra mais assumida. Queremos que as pessoas percebam que o lobo já não é o inimigo que era”, sublinha.

O canídeo foi “muito fustigado” numa aldeia em que os pastores cuidam à vez de todo o gado – as vezeiras - por atacar as cabras e, consequentemente, “o ganha-pão” de gente que se “tinha de levantar cedo para irem à montanha, com neve, chuva, ventos fortes”, recorda Lino Pereira. O responsável considera, por isso, que Fafião não deve “ter vergonha do passado”, já que as “pessoas eram pobres e perderam muito gado”, mas consciencializar-se do que o lobo precisa hoje de ser protegido.

Além dos contos, o festival reúne espectáculos musicais, exposições de pintura, escultura e fotografia, instalações audiovisuais e ainda duas peças de teatro – Animal Belo e Covil -, onde a relação entre a comunidade e o lobo vai ser protagonista, graças às performances dos actores Henrique Apolinário e Raquel de Lima.

Outra das iniciativas incluídas no festival passa por dar a conhecer os cães de gado, nomeadamente a raça Castro Laboreiro, existente naquela zona, numa parceria com o Grupo Lobo, organização não governamental para o ambiente que iniciou um programa há 22 anos. “O Grupo Lobo coloca à disponibilidade dos pastores que têm cabras o Castro Laboreiro, treinado para que o lobo não ataque as cabras, nem o homem ataque o lobo”, resume Lino Pereira.

Desde 1996, a organização já colocou mais de 500 cães de raças nacionais nas áreas de distribuição da espécie – Alto Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta -, e, em 2017, começou a colaborar com a Vezeira para garantir apoio técnico-científico, alimentar e veterinário a pessoas que não têm tanta experiência no tratamento do Castro Laboreiro, uma raça canina que “trabalha bem com a cabra bravia”, afirma ao PÚBLICO Sílvia Ribeiro, do Grupo Lobo.

A bióloga espera que os cães de gado, utilizados para guardar rebanhos, ajudem a preservar o lobo ibérico, cuja população ocupava quase todo o território nacional na década de 50 e se tem mantido “estável” no Minho, em Trás-os-Montes e na Beira Alta desde o último censo da população nacional de lobos, entre 2002 e 2003. O trabalho do então Instituto de Conservação da Natureza (hoje ICNF) confirmou a existência de 51 alcateias – 45 a Norte do Douro e seis a Sul. “Nalguns sítios, desapareceram algumas alcateias e noutros sítios há algumas alcateias que recolonizam em sítios onde tinham desaparecido”, explica Sílvia Ribeiro.

Comunitarismo (sempre) presente

Fafião distingue-se das demais aldeias na zona do Gerês pelo estilo de vida comunitário que lá permanece há gerações. Com 80 a 90 residentes durante a semana, a aldeia duplica a população aos fins-de-semana com as pessoas espalhadas pelo resto do país e mantém vivos hábitos como a vezeira, mas também como o uso comum do lagar de azeite, um dos locais que vai ser contemplados nos percursos comunitários, agendados para a manhã de sábado. “São as nossas imagens de marca, onde se pode ver ainda marcas vivas do nosso comunitarismo”, afirma Lino Pereira.

O pendor comunitário do evento, adianta o presidente da Vezeira, vê-se também nas refeições, no mercado da aldeia, no qual as pessoas “vão oferecer produtos cultivados ou criados por elas” aos visitantes, nas oficinas a mostrar o fabrico do pão tradicional e do burel, um tecido típico, e até numa queimada luso-galaica, associada ao legado celta na região.

 

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