Velhice e isolamento

Este é um desafio civilizacional. Não se compadece com a omissão e o silêncio.

Nos últimos anos, tem havido uma maior consciência das questões demográficas, ainda que parcamente reflectidas em fugazes notícias, logo trucidadas por uma qualquer evanescência do dia. Governos e partidos têm apresentado propostas relacionadas com o défice de nascimentos, embora quase sempre “engavetadas”, tem-se falado mais do rápido envelhecimento da nossa população e seu impacto nos sistemas de saúde e social, têm vindo a ser conhecidas projecções que antevêem sérios desafios no futuro já ao virar da esquina.

Há um ponto que tem tido menos atenção. Refiro-me à estrutura demográfica por família.

Os quadros seguintes (fontes: INE e Pordata) revelam a alteração profunda relacionada com a menor taxa de natalidade, a nuclearização da família e, sobretudo, o brutal aumento de pessoas a viver isoladamente.

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A percentagem de famílias unipessoais mais do que duplicou entre os Censos de 1960 e de 2011. Em valores absolutos, passou de 253.848 para 866.827, constituindo 21,4% das famílias, quando há 50 anos eram 10,8%. Ao contrário, as famílias mais numerosas (com seis ou mais pessoas, de diferentes gerações) diminuiu drasticamente de 17,1% para 2% do conjunto das famílias.

A nuclearização da família tornou mais visível a debilidade com que a sociedade enfrenta o futuro dos mais velhos. O segundo quadro deixa percepcionar muito claramente as questões associadas a esta tendência. Atingimos praticamente o limiar de 500.000 pessoas idosas a viver sozinhas. Para dar uma diferente ordem de grandeza, só neste século (2001-2017), por cada dia que passou, 30 pessoas com mais de 65 anos passaram familiarmente a viver isoladas (em muitos casos com múltiplo isolamento: familiar, relacional, territorial, pobreza).

Isto não significa que a velhice deva ser encarada como um problema. O notável aumento da esperança de vida deve ser olhado como um grande avanço humano e social, diria mesmo civilizacional.

Todavia, não estamos a dar resposta às novas questões daí decorrentes, seja no plano dos cuidados de saúde, seja no âmbito do apoio humano e social. Muita coisa mudou, no campo das instituições sociais, na menor segurança de bens e pessoas, nas tecnologias de comunicação, na formação de profissionais ou na organização do voluntariado.

A tendência para a massificação tem sido evidente e a supremacia da quantidade sobre a qualidade tem sido preponderante. Têm-se vindo a diluir formas de solidariedades capilares e de proximidade. Ou a sobrepor o poder da tecnocracia e burocracia sociais à imperativa humanização dos cuidados com os mais velhos.

Deixou de se centrar na família e na comunidade de vizinhança a coesão geracional inerente às solidariedades naturais, isto é, resultantes da natureza gregária das pessoas e não produzidas pela ordem jurídica. Nada tenho contra os lares institucionais. Mas sou contrário à tendência, por inércia, para a betonização da velhice. O lar é o último e muitas vezes inevitável recurso, sobretudo como modo de contrariar o total isolamento. Mas jamais poderá ser uma via de facilitação, não raro egoísta, que conduza perigosamente ao enfraquecimento e à fragmentação da família, à ruptura do diálogo intergeracional e à indignidade da omissão perante os mais velhos.

As respostas clássicas são cada vez menos suficientes e mais desenraizadas, e têm dificuldade em destrinçar os velhos dos mais velhos entre os velhos. A organização da nossa estrutura sanitária e hospitalar não favorece (pelo contrário) os cuidados a prestar a esta parte da população e há uma tendência larvar ou explícita para o “racionamento” dos cuidados em nome do utilitarismo predominante da ideia danosa de “que já não vale a pena!”. Tem havido, contudo, um aumento muito positivo da oferta social de cuidados domiciliários, de cuidadores informais (a este propósito, saúdo as iniciativas legislativas do CDS, PCP e BE) e de formas de combater a exiguidade relacional.

É também imperioso haver uma melhor articulação entre os sistemas de saúde e de segurança social, cuja separação ministerial tem tido efeitos negativos nas políticas públicas associadas às doenças geriátricas, aos cuidados continuados, aos idosos acamados e dependentes e à assistência pós-hospitalar, entre outras. E o IRS deveria consagrar a possibilidade de se incluírem os ascendentes que vivam em comunhão de habitação com o sujeito passivo na divisão do rendimento colectável (actualmente, apenas há a dedução à colecta de 525 euros desde que o ascendente não tenha rendimento superior à pensão mínima). Afinal não são pessoas como as outras, cuja permanência nos seus lares naturais deveria ser incentivada, sendo que o Estado até pouparia?

Este é um desafio civilizacional. Não se compadece com a omissão e o silêncio, com visões de curto-prazo, ilusoriamente mediáticas, mas sim com políticas largas, transversais e de amplo consenso.  Este é um problema para o qual temos o dever de evitar fracturas sociais e geracionais, e não de “oferecer” fracturantemente eutanásias legais, sociais ou relacionais.

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