Preto no Porto

O racismo pode ser reduzido à irrelevância se formos vigilantes e ativos no seu combate. Ele não vai desaparecer sozinho.

No último livro de Jacinto Lucas Pires, o romance A Gargalhada de Augusto Reis, há um jovem poeta chamado Djalma dos Santos, nascido de mãe cabo-verdiana e pai angolano num dos bairros africanos dos subúrbios de Lisboa, que vai trabalhar para o Porto e que escolhe aí fazer a sua vida. Uma das suas ficcionais antologias de poesia chama-se Preto no Porto.

Na subtileza de que é feito o romance, sempre construído em torno de um respeito pelos não-ditos das personagens, ficamos sem saber muito sobre o que teria a dizer aquele Preto no Porto. Mas se o título é evocativo, é porque há nele um comentário implícito a uma coisa que já foi mais rara do que hoje é: ser negro na segunda maior cidade do país.

Não é preciso ir mais longe do que os anos 90 para nos lembrarmos como as notícias sobre crime em Lisboa traziam sempre consigo o subentendido racista de serem notícias sobre imigrantes negros ou afrodescendentes em Lisboa. Foi assim que se foi criando uma imagem que teve consequências nos abusos policiais na Cova da Moura, por exemplo. Por detrás dessa imagem estava também um tratamento dúplice em relação ao crime noutras partes do país. Nessa época, por exemplo, o crime no Porto nunca era associado a imigrantes ou afrodescendentes e por isso nunca era alvo do mesmo aproveitamento político ou mediático. Se o crime de portugueses brancos era só crime, o crime de imigrantes ou portugueses negros era notícia e “caso político”.

Por detrás disso tudo havia uma fácil constatação: ambas as cidades tinham as vantagens e dificuldades que têm as grandes áreas metropolitanas, mas no Porto não havia o mesmo mosaico humano que havia em Lisboa. Em particular, no Porto havia menos negros que em Lisboa. Só que hoje o Porto é também uma cidade cada vez mais atrativa e diversa: há mais estudantes de todo o mundo, há mais estrangeiros, e há também mais portugueses negros. Por isso o título do livro inventando por Jacinto Lucas Pires para Djalma dos Santos é evocativo. Em Preto no Porto há uma vontade, até um desafio: que se comece a falar mais sobre a experiência de se ser negro em todo o país, incluindo no Porto ou nos Açores (começando por ouvir mais o que têm os nossos concidadãos negros para nos dizer acerca das suas experiências).

Estava eu com estes pensamentos quando vejo nas redes sociais um apelo. Uma jovem que se auto-identificava como “preta”, por acaso no Porto, e uma sua amiga de nacionalidade colombiana mas vivendo em Portugal desde criança, tinham sido agredidas com gravidade por um segurança de transportes públicos na noite de São João. Segundo o seu testemunho, para o qual pedia corroboração de outras pessoas que tivessem assistido ao sucedido, o agressor ter-lhes-ia lançado o insulto “pretas de merda” e impedido de entrar no autocarro, tendo acabado por agredir repetidamente uma delas. Sabemos hoje como ficou a cara dessa vítima: a foto do seu rosto cheio de hematomas está em todos os jornais. Sabemos também que a polícia demorou três dias a agir neste caso, e que apenas o fez por pressão exterior. Não foi o primeiro caso de agressões preconceituosas em transportes públicos: em 2014 uma mulher lésbica foi agredida num táxi depois de se despedir da namorada, também no Porto. E não foi, é claro, o primeiro ataque racista no país — e infelizmente poderia ter ocorrido em qualquer outro lugar, de Lisboa à Madeira — mas foi talvez o primeiro caso ocorrido no Porto que atinge esta dimensão de indignação. E a indignação serve para alguma coisa. Para unir as pessoas na solidariedade com as vítimas. Para avançar no caminho de erradicar este tipo de fenómenos no nosso país.

Sobre o racismo há dois tipos de coisas que hoje se dizem muito e que, a meu ver, sendo contraditórias, são ambas erradas. A primeira é a de que o racismo é hoje pouco prevalente (é um argumento que agora se usa muito em política: “tantos por cento de pessoas que votaram em partidos racistas não podem ser todas racistas”; bem, todas talvez não sejam, mas nesse caso parece estranho que tantas pessoas não-racistas fossem votar ao engano em partidos racistas). A segunda é que esse racismo supostamente pouco prevalente é, porém, impossível de erradicar: como se houvesse uma “natureza racista” inevitável entre os humanos.

Ambas as percepções estão erradas. O racismo é ainda hoje mais prevalente do que muita gente está preparada para admitir, até porque o racismo mais evidente como o das agressões físicas e verbais a estas jovens no Porto é apenas um dos obstáculos que os negros em Portugal são obrigados a ultrapassar (o agente imobiliário que diz que a casa que um negro tenta arrendar “já está ocupada” não aparece nas notícias do jornal, mas praticamente todos os negros que conheço ou de quem sou amigo têm histórias destas para contar). Por outro lado, é possível erradicar o racismo ou torná-lo tão irrelevante que ele já não tenha de fazer parte das preocupações quotidianas de quem hoje o vive, como em tempos foi possível erradicar preconceitos tão absurdos quanto a crença de que certas mulheres eram feiticeiras ou de que católicos e protestantes tinham de se massacrar mutuamente na Europa. Quer dizer, ainda há quem acredite em tais coisas e em certos cantos do mundo, mesmo desenvolvido, tais fenómenos duraram até à nossa geração, mas é possível acabar com eles. Com uma condição: o racismo pode ser reduzido à irrelevância se formos vigilantes e ativos no combate ao racismo. Ele não vai desaparecer sozinho.

Mas se formos vigilantes, ativos e solidários, perto estará o dia também implícito no título daquele livro imaginário, Preto no Porto: o de que ser negro, e viver no Porto, significa a possibilidade de se ser mais um portuense feliz numa cidade magnífica. Foi essa possibilidade que foi brutalmente retirada a duas jovens negras na noite de São João. E só se agirmos todos — concidadãos, forças policiais, justiça, políticos — é possível fazer com que essa brutalidade não seja mais do que uma injustiça que pode ser corrigida. É com a solidariedade de todos que conseguiremos restituir às vítimas deste ataque e a todas pessoas que poderiam ter estado no lugar delas o sentido da segurança e a felicidade de serem jovens, mulheres e negras no Porto e em todo o país que é delas.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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