Khuloud Kalthoum, a refugiada síria que ajuda outros migrantes a sentirem-se em casa

Despediu-se da Síria há três anos e escolheu Portugal para prosseguir os estudos. Em 2017 conheceu o Speak, um programa de integração de estrangeiros e refugiados através de línguas, e agora começou uma campanha de crowdfunding para sedimentar o projecto em Braga (e não só).

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Khuloud é engenheira electromecânica e fez o mestrado em Energias Sustentáveis no ISEP. Manuel Roberto

Num país que não é o seu e rodeada por uma língua que não é a sua, foi a ler livros infantis, como Ali Babá e os 40 Ladrões, que Khuloud Kalthoum aprendeu, pouco a pouco, a língua portuguesa. Aos 26 anos, deixou Damasco devido à guerra e chegou a Portugal em 2015, ao abrigo da Plataforma Global para Estudantes Sírios (GP4SS), organização fundada pelo ex-presidente Jorge Sampaio, para prosseguir os estudos.

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Num país que não é o seu e rodeada por uma língua que não é a sua, foi a ler livros infantis, como Ali Babá e os 40 Ladrões, que Khuloud Kalthoum aprendeu, pouco a pouco, a língua portuguesa. Aos 26 anos, deixou Damasco devido à guerra e chegou a Portugal em 2015, ao abrigo da Plataforma Global para Estudantes Sírios (GP4SS), organização fundada pelo ex-presidente Jorge Sampaio, para prosseguir os estudos.

Por causa disso, conhece em primeira mão as dificuldades que os migrantes e refugiados encontram enquanto se estão a adaptar a uma nova vida. Agora, a jovem síria quer fazer a sua parte e contribuir para que quem está nessa situação se sinta “em casa numa cidade estrangeira.” A viver em Braga, Khuloud criou agora uma campanha de angariação de fundos para sedimentar o Speak, projecto que promove cursos de línguas e actividades de integração entre nativos e estrangeiros, e que já está em funcionamento na cidade desde Setembro de 2017. 

“A missão do Speak é juntar pessoas, quebrar barreiras linguísticas e fazer amigos”, explica Khuloud, à mesa de um café no Porto. “Conheço uma família síria em Braga que chegou a Portugal há um ano e nunca se sentiu à vontade para contactar com os portugueses. Por isso, na semana passada, fizemos um jantar sírio com essa família e os estudantes do curso de árabe e sinto que isso os ajudou a ganhar confiança”, acrescenta.

É, aliás, o que a rede Speak ambiciona, desde os primeiros passos em Leiria em 2013: ligar locais e estrangeiros através do intercâmbio de línguas e culturas. O projecto propõe, do mesmo modo, ajudar a integrar pessoas migrantes e refugiadas, quebrando estigmas, promovendo a igualdade e criando, pelo meio, redes de suporte informal entre os participantes. 

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Em Braga, Khuloud dá aulas de árabe a um grupo de portugueses. Manuel Roberto

A fundadora do grupo bracarense quer alicerçar o projecto e, para isso, lançou uma campanha de crowdfunding em conjunto com o colectivo Desert Sailors. O grupo de sete aventureiros portugueses vai participar no Rally da Mongólia para angariar 20 mil euros para ajudar a jovem refugiada a expandir o Speak em Braga e até a outra cidade portuguesa. A Google já se juntou ao desafio e irá doar um euro por cada euro angariado. De momento, já conseguiram angariar mais de nove mil euros.

“A equipa do Speak não poderia estar mais perto do meu coração", confessa Khuloud. "Mudar de cidade ou de país nunca é fácil, mas consegui ultrapassar esses desafios e agora estou a fazer a minha parte, quero ajudar pessoas a integrarem-se numa nova comunidade. Em Braga, tenho uma rede de amigos fantástica, sinto-me em casa e acho que todas as pessoas têm direito a sentirem-se em casa numa cidade estrangeira.”

“Quando saía de casa não sabia se voltava”

Em 2011, quando eclodiu o conflito na Síria, Khuloud estudava Engenharia Electrotécnica na Universidade de Damasco. “Sempre quis ser engenheira”, conta Khuloud. Filha de um engenheiro, a jovem cresceu a ouvir o pai falar sobre linhas aéreas e transformadores. Por isso, quando concluiu o ensino secundário, fez-lhe todo o sentido optar por uma licenciatura de cinco anos na mesma área. Nessa altura, o país tinha um sistema de ensino superior em expansão, com um quinto da população entre os 18 e os 24 anos a frequentar universidades, mas o conflito forçou mais de 200 mil sírios a desistirem dos estudos, segundo números do Institute of International Education. Khuloud concluiu a licenciatura, mas viu-se impedida de prosseguir para o mestrado.  

Viveu de perto a guerra e sentiu na pele as suas consequências. “Damasco é mais seguro do que outras cidades, mas todos os dias víamos bombardeamentos e vi muitos colegas morrerem. Sentia muita insegurança, quando saía de casa não tinha a certeza se iria voltar”, confessa a jovem, que recorda “de coração apertado” a família que deixou naquela cidade em ruínas.

“A guerra já dura há sete anos e até hoje a situação não está estável, mas as pessoas estão habituadas", diz. "Para os mais velhos", refere, comovida, "não é fácil mudar de país, mas para os jovens é obrigatório fugir". Foi o que os seus irmãos fizeram: o mais velho trabalha na Holanda e o mais novo, Ahmad, seguiu os passos da irmã e estuda Engenharia Civil na Universidade de Aveiro, também com uma bolsa da plataforma criada por Jorge Sampaio. De acordo com um relatório do Alto Comissariado para as Migrações de Dezembro de 2017, Portugal é o sexto país da União Europeia com o maior número de refugiados acolhidos no âmbito do programa de recolocação, tendo recebido 1520 cidadãos entre 2015 e o final de 2017.

Em Damasco, Khuloud tem ainda os pais e uma irmã, que nunca mais viu depois de se mudar para Portugal, já lá vão três anos. “As saudades são imensas, mas é muito difícil regressar ou trazê-los a Portugal, por isso estamos à espera que as coisas acalmem", diz, de sorriso no rosto e olhos brilhantes. "Costumamos falar por Skype, falo com o meu pai sobre o trabalho e a vida cá. Ele diz que tem muito orgulho em mim.”

A vida em Portugal

A vinda para Portugal trouxe desafios e dificuldades, mas também uma nova esperança a Khuloud. A língua e a cultura foram algumas das maiores diferenças que a jovem encontrou, mas nunca se sentiu sozinha: “Vivi em Vila do Conde, no Porto e em Braga e tive sempre pessoas muito simpáticas comigo, que me ajudaram com a língua e na adaptação.”

Apesar de agora já ser fluente em português, em 2015 Khuloud chegou ao Porto sem saber uma palavra. Ainda assim, optou por ter as aulas do mestrado em Energias Sustentáveis em português, em vez de optar pela oferta lectiva direccionada para os estudantes internacionais — e não se arrepende.

Durante três meses, frequentou ainda um curso de português com um grupo de estudantes sírios. Como não foi suficiente, apostou também em aulas privadas. “Comecei a ler livros infantis, lembro-me bem de ler o Ali Babá e os 40 Ladrões, repetia frase atrás de frase”, recorda a jovem síria, que entretanto se apaixonou pela literatura portuguesa.

Era a única estrangeira no mestrado do Instituto Superior de Engenharia do Porto, mas quando alguém tentava iniciar uma conversa em inglês, escusava-se: “Dizia ‘não, eu quero praticar o português, falem em português’.” O primeiro ano foi o mais difícil, mas com esforço foi superando as dificuldades e acabou mesmo por escrever a tese em português — que concluiu com 17 valores — e hoje gosta muito de ler na língua de Camões.

Seguiu-se um estágio curricular e profissional na EDP e, ao receber uma proposta de trabalho na empresa, mudou-se para Braga. Para Khuloud, estar parada não é opção. É voluntária do serviço de leitura especial da Biblioteca de Vila Nova de Gaia, que coloca à disposição de pessoas com deficiência livros em braille, áudio ou em formato digital, e frequenta diversas formações de empreendedorismo, inovação e serviços sociais. Agora, no Speak, vê a “oportunidade ideal” para aplicar as suas competências.

Speak: dez cidades, quatro países, um mundo

Foi na maratona de programação Hack For Good — que no ano passado procurava soluções tecnológicas para ajudar refugiados — que Khuloud conheceu o projecto Speak. Ao ouvir a apresentação de Hugo Menino Aguiar, o fundador da plataforma, ficou tão entusiasmada que quis saber mais.

O projecto, criado em 2013, proporciona cursos de línguas com a duração de três meses, para estrangeiros, assim como uma série de actividades de integração. As aulas, de hora e meia, em horário pós-laboral, acontecem uma vez por semana e são dadas por buddies, voluntários que abrem mão do seu tempo livre para transmitir os seus conhecimentos a quem precisa. “Qualquer pessoa pode ir ao site e inscrever-se para aprender um idioma ou então ensinar o seu ou outra língua que fale bem”, refere a jovem síria, actualmente a leccionar um curso de árabe em Braga, onde já existem 200 pessoas inscritas. “Temos oito participantes portugueses que estão mesmo empenhados em aprender árabe e vamos ainda abrir aulas de inglês e italiano.”

Os cursos são gratuitos para os buddies; já os participantes pagam 25 euros por curso para ajudar a cobrir as despesas com a logística e arrendamento de espaço. A par dos cursos de línguas, o Speak oferece também os Language Exchanges, eventos sociais que promovem a integração e onde é possível colocar em prática os conhecimentos linguísticos aprendidos durantes as aulas. Ao todo, o Speak chega hoje a mais de 14 mil pessoas, estando presente em sete cidades portuguesas (Leiria, Amarante, Aveiro, Braga, Coimbra, Lisboa e Porto) e três no estrangeiro (Berlim, Madrid e Turim). É uma forma, diz a engenheira, de abrir a mente: “No final, os refugiados e migrantes sentem-se integrados na comunidade e os locais aprendem novas línguas e conhecem outras culturas.”