Coisas

Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.

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“As pessoas são seres extraordinários. Só têm um defeito: morrem.” Não sei se é dos traços marcados daquela face, vida dura, vida longa em cada ruga; não sei se é daquele olhar cinzento quase transparente que intimida; não sei se é daquele feixe de luz que entra por uma abertura lá em cima e passa em tangente pelos seus cabelos revoltos, caindo, em forma de losango, na laje aos seu pés, de onde se refracta pouco menos do que impossivelmente. Mas de alguma coisa vem o poder de tornar convincente aquela meditação filosófica de um neo-alquimista num local recôndito das nossas serranias mais esparsamente habitadas. Alguma coisa é. Alguma coisa – quando não sabemos o nome, chamamos-lhe coisa.

O problema é não sabermos, na nossa língua, o nome de tantas coisas que só julgamos que existem em inglês, em francês, em castelhano, mas que, afinal, também temos. Só precisaríamos de os aprender e, uma vez aprendidos, de não os esquecer...

E aqui entra a história conhecida de um concidadão nosso que tinha emigrado, ainda novo, para terras de França e que, quando voltou à sua aldeia, já senhor de posição que lhe davam as posses que com ele trouxe para provar a vida ganha, ao olhar para as alfaias agrícolas que, por nostalgia, lhe tinham dado a ver familiares da sua terra, já não soube dizer o nome do ancinho com que tanto tinha trabalhado, símbolo rústico do atraso que tinha deixado para trás. Até que, ao passar, pôs o pé em cima dos dentes metálicos de um desses utensílios esquecido no chão, fazendo levantar o respectivo cabo de madeira, que lhe acertou, em cheio, na nuca. Imediatamente se deu o milagre de se lembrar claramente de duas coisas: de um palavrão em vernáculo e do nome do ancinho.

Analogamente, talvez o povo precise ainda de umas canadas de bambu pelas orelhas abaixo para lhe despertar as memórias dos nomes que aprenderam na escola mas que agora só sabem em inglês. Que pena serem agora consideradas antipedagógicas, pois cairiam tão bem em certas mentalidades que os antigos mestres sabem estarem indissociavelmente ligadas às orelhas, grandes ou pequenas, sempre moucas para o português.

Claro que tudo isto não passa de um grande chiste com que pretendo trazer de volta o tom mais aprazível da facécia ao universo de seguidores destas crónicas, tão avessos ao politicamente incorrecto como apreciadores da galhofa inteligente e substancial. E continuamos em tom de facécia quando os alerto para a dificuldade extrema não só de escrever em português, mas, sobretudo, de traduzir de outras línguas para português nomes de coisas que os portugueses não sabem, não querem saber e que ficam zangados quando lhes dizem quais são. Para quê descobrir que loop é lacete? Ficam contentes? Não, ficam aborrecidos por os contrariarmos na cisma de que loop não tem tradução. Além disso, lacete é feio. E para que havemos de ocupar a cabeça com nomes feios se podemos tudo designar em inglês, ou, em alternativa, por “coisa”, “aquela coisa” ou “coisinha”? É como termos de nos lembrar, caso a caso, de “executar”, “aplicar”, “levar a efeito”, “pôr em prática”, etc., quando podemos dizer apenas “implementar” e ficar com mais tempo para apostar nos jogos de resultados desportivos ou para jogar mais uma partida de Game of Thrones ou de Grand Theft Auto XII?

Do mesmo modo, se podemos dizer “chega-me aquela coisa que está em cima da mesa”, ou “falta-me uma coisa que encaixa nesta coisa”, ou, mais tecnicamente, “pronto, lá me saltou uma mola deste pinchavelho!...”, para quê aprender nomes de objectos que só se vêem em museus ou que só vou encontrar se me dispuser a consertar uma máquina de costura? Quanto aos brasileiros, ouvimo-los falar não de “coisas”, mas de “negócios”, passando pelas minudências de “um negocinho que encaixa naquele negócio lá”, no que pode parecer um sentido comercial tropical muito apurado: todas as coisas são negócios potenciais.

Assim, ao contrário de franceses, ingleses, norte-americanos, australianos até, aos portugueses e brasileiros não lembra a maçada de terem de aprender um rol de nomes. É uma questão de economia. Ficam-se pelos infinitivos dos verbos, sem cuidar de saber qual é o nome correspondente daquela família (“e olhe lá!...”).

Qual é o acto de polir? Polidura ou polimento (e não “polissagem”, como erradamente vi escrito em letra de imprensa num veículo comercial circulante em Portugal).

Qual o acto de soldar? Soldadura – com a variante soldura – ou soldagem.

De ralar? Ralação, raladura.

De serrar? Serração, serraria, serradura (serradura é também um nome para o pó que cai da madeira quando se serra; outro é serrim).

E de malhar? Malha, malhada ou malhadela.

De enfiar? Enfiamento.

De cozer? Cozedura, cozimento, cocção.

De coser? Costurar.

De peneirar? Peneiração, peneirada.

De equilibrar? Equilíbrio (e não “equilibragem”, por confusão com calibragem, acto de calibrar, o que é coisa bem diferente. As rodas dos automóveis, por exemplo, equilibram-se com pequenos chumbos, para distribuir o peso mais uniformemente durante a marcha, não se calibram, a não ser na fábrica das jantes, a que no Brasil chamam rodas).

De rectificar? Rectificação (seja uma conta, seja uma peça metálica que se deformou e que se pretende que regresse à configuração inicial). E rectificador ou rectificadora é a pessoa que rectifica ou a oficina ou a empresa onde se fazem as rectificações (e não “retífica”, como vi no Brasil).

De aceder? Acesso. Por isso, não invertamos as posições, inventando o verbo “acessar” a partir de acesso. Seria o mesmo que inventar “retrocessar” a partir de retrocesso, quando o verbo é retroceder. Ou formar “abcessar” a partir de abcesso, quando o correcto é abceder. Ou “progressar” a partir de progresso (progredir).

E lamento desapontar, mas em Portugal não temos “amassos”, só temos amassadelas, que são sinónimos de amolgaduras, isto é, em carros depois de chocarem contra objecto pesado, nunca em pessoas. Temos até amassadura, para o acto de amassar o pão, por exemplo, mas para significar o acto de avaliar a consistência das carnes humanas – que é hoje considerado hábito bárbaro, a não ser em locais propícios a tais barbaridades – temos apalpadelas, apalpações e, em casos extremos, apalpões. Em casos mínimos, só com dois dedos, beliscões. É só.

A diferença semântica é que, quando se amassa, aquilo que é amassado não volta à forma primitiva, passando de convexo a côncavo de forma quase definitiva, sendo reversível apenas a troco de um salário/hora de técnico especializado, ao passo que, quando se apalpa, a elasticidade do que é apalpado volta rapidamente à primeira forma, permitindo a continuidade do jogo quase indefinidamente (antigamente; hoje já não).     

Conferência não é só uma “reunião para tratar de assuntos particulares ou públicos”, mas também o acto de conferir.

Armazenamento ou armazenagem? Os dois.

E pelas casas, o que havia?

Um psiché era um toucador com gavetas como uma cómoda, mas mais baixo, encimado por um espelho tríplice, cujas partes laterais eram móveis, para permitir observar ângulos da face (e do cabelo) invisíveis ao espelho frontal fixo. Palavra provavelmente com etimologia na princesa grega Psique (a Alma), do mito de Psique e Eros, tornada imortal a pedido deste.  

O galheteiro é um utensílio ainda identificável pelos mais velhos, mas não sei se ainda pelos mais jovens. Mas mesmo os mais velhos saberão o que são as galhetas do galheteiro?

Uma dobadoura ou dobadoira, o que é? Quem doba ainda meadas em casa, ou seja, quem transforma meadas de lã em novelos? E, se o fizer, usa as costas de uma cadeira em vez da dobadoira.

Uma almotolia era uma caixinha metálica hemisférica com um bico muito fino e comprido com que as mães oleavam as suas estimadas máquinas de costura, através de uns buraquinhos que existiam para o efeito.

Uma plaina é um instrumento com o qual o carpinteiro tira os empenos a uma tábua, já se sabe. Mas quantos saberão o nome de uma plaina grande? É uma garlopa, palavra estranha em português, o que se deve a ter derivado do neerlandês voorlop.

E quem jogava à macaca na escola (será que alguém joga ainda?) ainda se lembra do nome da pedra redonda e chata (normalmente uma lousa, que outros conhecem por ardósia ou xisto) que se arrastava com o pé para dentro das casas quadradas desenhadas no chão? Era patela. Tal como o disco de ferro que se atira pelo ar no jogo da malha (ou do fito), para derrubar o meco de madeira (ou fito). Ah, e também é o nome da rótula do joelho.

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