Julgamento de médico por roubo de bebés senta franquismo no banco dos réus
Inés Madrigal foi, em 1969, ilegalmente entregue a uma família adoptiva e conseguiu levar o ginecologista Eduardo Vela a tribunal, quase 50 anos depois. Mas milhares de crianças foram roubadas durante décadas em Espanha.
Durante 19 anos de casamento, Inés Pérez não conseguiu ter filhos com o seu marido. Até que um dia a clínica de San Ramón, em Madrid, lhe comunicou: “Temos uma surpresa”. Foi o médico Eduardo Vela que lhe anunciou: “Olha que presente, tenho uma menina para ti”. Estávamos em 1969 e a “oferta” a Inés Pérez começou esta semana a ser julgada nos tribunais, quase 50 anos depois. Esta adopção foi apenas mais uma numa rede tecida durante o período do franquismo e que se estendeu para lá da ditadura espanhola.
O relato desta situação foi feito pela própria Pérez em 2011, na altura com 87 anos, ao El País, e, mais tarde, perante os tribunais. A bebé era Inés Madrigal, que quando fez 18 anos soube que tinha sido adoptada, começando imediatamente a tentar descobrir o paradeiro da sua família biológica. E conseguiu que o ginecologista Eduardo Valente, que era director da San Ramón, actualmente com 85 anos, fosse posto no banco dos réus para responder pelos crimes de adopção ilegal, detenção ilegal, falsificação de documentos e certificação de falsos nascimentos. O Ministério Público pede 11 anos de prisão.
O julgamento começou na terça-feira e é a primeira vez que alguém é julgado na sequência de um dos lados mais negros da ditadura de Francisco Franco e que ainda hoje pode ser considerado um tema tabu em Espanha: o roubo de bebés a republicanos e de defensores do marxismo. A freira Maria Gomez Valbuena, a irmã Maria, o nome mais citado pelos que, voluntária ou involuntariamente, se viram envolvidos na trama que durante décadas funcionou como uma rede paralela de adopção em Espanha, morreu em Janeiro de 2013, sem chegar a ser ouvida em tribunal.
Exterminar o "marxismo"
A rede iniciou-se quando as tropas de Franco combatiam os republicanos na sangrenta guerra civil espanhola, em 1936. Enquanto os nacionalistas ganhavam terreno, os republicanos eram presos. As mulheres também. As prisões enchiam-se de crianças que tinham nascido entretanto ou que acompanharam as mães.
Estas foram sendo entregues a famílias leais ao regime que conquistou o poder em Espanha.
Mas toda esta actuação tem origens anteriores à guerra. Em concreto, no psiquiatra militar Antonio Vallejo Nájera. Fez parte da formação na Alemanha, numa altura em que a ascensão nazi estava em curso. E foi aí que estudou as teorias raciais que serviriam de base ao nacional-socialismo de Adolf Hitler. Apesar de a ideologia que foi formando ser significativamente diferente da preconizada pelo regime nazi, Nájera tornou-se um acérrimo defensor da purificação da raça hispânica. E para isso era preciso exterminar o marxismo que, defendia, era uma doença da qual padeciam seres moralmente inferiores. Por isso, era preciso estancar esta “epidemia”.
A sintonia de Franco com esta teoria foi evidente. Nájera foi nomeado para liderar os Serviços Psiquiátricos do Exército quando estalou a guerra civil. Para aplicar esta tese, como descreve no El País o poeta Benjamín Prado, os nacionalistas começaram a “separar o trigo do joio”. Ou seja, para evitar o contágio separando os recém-nascidos das famílias que padeciam já da “doença”.
Franco venceu a guerra em 1939 e assinou, em 1940 e 1941, a legislação que abriu portas a esta prática. As leis ofereciam de forma automática ao Estado a tutela das crianças nascidas nos abrigos sociais, e era autorizada a alteração dos seus apelidos.
O “juiz-estrela” de Espanha, Baltasar Garzón, tentou, sem sucesso, julgar os crimes do franquismo em 2008, e calculou que pelo menos 30 mil crianças foram tiradas às famílias. Mas o número exacto é incalculável, até porque a prática estendeu-se para lá da morte de Franco (em 1975) – ainda que por razões diferentes.
“Este é o terreno fértil do qual emanou e no qual foi sustentado um sistema criminoso de roubo de bebés em Espanha: toda uma autoproclamada missão pseudomessiânica através da qual o Estado salvava os recém-nascidos do demónio ‘vermelho’ para serem criados em instituições católicas, falangistas [o partido fascista Falange Espanhola], ou entregando-os a famílias próximas ao regime, que representavam melhor o ideal fascista da raça espanhola”, explicava Garzón, no ano passado, num grupo de trabalho no parlamento catalão.
Satisfazer um mercado
A prática pode ser dividia em dois períodos: até 1950, era aplicada nas prisões franquistas e directamente nas famílias republicanas e opositoras ao regime. A partir daqui ocorreu em clínicas ou abrigos para mães, geralmente geridas por organizações religiosas.
Nesta segunda fase, o alvo já não eram presidiárias acusadas de ligações comunistas, mas sim mães solteiras e pobres. E já não era à vista de todos. A pressão dos médicos ou freiras era a arma para convencer as mães de que não tinham maneira de oferecer condições de vida ao recém-nascido. Ou forjava-se a morte da criança.
Tal como disse, em 2011, ao El País, o sociólogo Francisco González de Tena, que estudou este tema através de entrevistas às vítimas, na segunda etapa “havia um mercado que exigia crianças para adopção e criou-se um sistema para satisfazer esta demanda”.
Estas histórias foram sendo tornadas públicas nas últimas décadas através dos testemunhos das crianças que entretanto se tornaram adultos e foram à descoberta das suas reais origens, e também das mães que ficaram sem os seus filhos.
Mas este legado negro foi sendo relegado para segundo plano na sociedade espanhola. Em 2002, estreou o documentário Els nens perduts del franquisme (As crianças perdidas do franquismo), de Montse Armengou e Ricard Belis, que é considerado um dos trabalhos mais aprofundados sobre o tema, e amplamente galardoado internacionalmente. Porém, foi apenas transmitido na Catalunha, País Basco e Andaluzia. A TV2 transmitiu anos depois apenas parte do documentário.
Assinatura renegada
O arranque do julgamento do ginecologista Eduardo Vela fez com que “as crianças perdidas do franquismo” voltassem a estar em destaque em Espanha.
Inés Pérez, a mão adoptiva de Madrigal, reconheceu, em 2013, Vela como o médico que quase 50 anos antes lhe entregou o bebé e que a ensinou a fingir a gravidez. Em 2016, Pérez foi acusada no âmbito do processo mas morreu dias depois, com 93 anos.
Na fase de instrução, Vela foi confrontado com um documento que confirmava, falsamente, o parto de Pérez. O médico confirmou a sua assinatura no papel mas afirmou que assinava documentos sem olhar para eles. Nesta terça-feira, no início do julgamento, disse que esta declaração não era sua. “Nunca dei uma criança a ninguém”, garantiu também.
A audiência deveria continuar nesta quarta-feira, mas o advogado revelou que o ginecologista foi internado de urgência.
A mãe adoptiva contou a Inés Madrigal que a progenitora biológica era uma “mulher casada que teve uma aventura”. Mas, ao ler um artigo do El País, em 2010, sobre bebés roubados na clínica de San Ramón - onde nasceu - Madrigal arregaçou as mangas e foi tentar saber a verdade. Pediu exames de ADN que confirmaram que não era filha de Pérez, o que desmentia também o documento assinado por Vela em 1969.
Acabou por fazer queixa da mãe adoptiva para agilizar o processo. “Ela nunca acreditou que por trás estivesse uma mulher enganada, um roubo de bebés, mas queria ajudar-me a conhecer a minha origem”, conta Madrigal ao El País. “Foi muito valente”, diz ainda sobre a mãe adoptiva.
San Ramón e Vela tornaram-se o centro de toda a história. A clínica funcionou desde 1960 até aos anos 1980, altura em que a revista Interviú publicou uma reportagem sobre vários casos de adopções ilegais, acompanhada por uma fotografia de um bebé morto, forçando o seu encerramento.
O caso de Madrigal é apenas um entre milhares. A comunicação social espanhola estima que foram denunciados cerca de 3000 casos à Justiça, mas quase todos acabaram arquivados.
O exemplo de San Ramón também não é único. O El Confidencial publicou no início de Junho uma extensa reportagem sobre a maternidade de Peñagrande, também em Madrid, que esteve activa desde os tempos do franquismo até aos anos 1980.
Várias mulheres que aí deram à luz relatam um ambiente de verdadeiro terror às mãos das freiras que geriam o estabelecimento. Ali funcionava também uma rede tráfico de crianças – muitas delas dadas, falsamente, como mortas – a troco de dezenas de milhares de euros.
Num ambiente de pressão constante para que as mães dessem as suas filhas para adopção, as humilhações que as mulheres sofriam eram diárias. Os bebés que morriam – algo recorrentemente, devido à falta de condições – eram enterrados no jardim (quando se construiu um campo de basquetebol neste local, foram descobertos os restos mortais de vários recém-nascidos).
“O sacerdote dizia-nos que não podíamos aspirar a um marido normal, só a um que nos tocasse pouco”, contou ao El Confidencial María Ángeles Martínez, que entrou na maternidade em 1972.
“De puta para cima chamavam-te de tudo para te afundar e para te ter à sua mercê”, relata, por sua vez, Dolores, que chegou a Peñagrande grávida de seis meses do seu próprio pai. “[As freiras] não nos deixavam levantar os olhos do chão porque éramos uma vergonha”, continua. “Diziam que o meu problema era vício”. E por carregar um filho do próprio progenitor, Dolores “não era só puta, era dupla-puta”.
“Estes acontecimentos foram ocultados do povo espanhol”, diz o sociólogo Vicenç Navarro, num texto publicado no El País em 2008. Navarro recorda também a reacção dos seus alunos depois de lhes ter mostrado o documentário de Armengou e Belis: “Ao entrar na aula no dia seguinte, notei um silêncio ensurdecedor. Os estudantes estavam surpreendidos, envergonhados e indignados por lhes ter sido ocultada parte da história do seu país. Sabiam que tinha acontecido na Argentina e Chile, mas desconheciam que tinha acontecido em Espanha”.