O duro fardo de ser português

Chamem-lhe descobertas, expansão, viagem, encontro ou o que quer que seja, mas não queiram que se passe da glorificação acrítica para a anulação preconceituosa de um período crucial para a definição do que somos.

Retire-se a esfera armilar da bandeira, suprima-se o estudo de Os Lusíadas, dinamite-se a Torre de Belém e o Padrão dos Descobrimentos, arrase-se Goa, Ouro Preto e Moçambique, apaguem-se os nomes dos navegadores da toponímia das cidades, proíbam-se as Décadas da Ásia de João de Barros, mudem-se os versos do hino que exaltam o “esplendor de Portugal”, enterre-se a lusofonia e meta-se Portugal num divã a sublimar os traumas do seu passado. O debate em torno do museu dos Descobrimentos proposto por Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, para promover a “reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural nos seus aspectos mais e menos positivos” está em vias de criar um complexo de culpa tão intenso e profundo que exige a reinvenção do país. Já não está em causa o debate saudável promovido por académicos em torno do significado dos “descobrimentos”; agora a coisa fia mais fino e só se supera com uma revolução cultural que destrua uma das mais consensuais bases da identidade nacional.

O debate deixou definitivamente de se fazer em torno da memória histórica e da plural discussão sobre a miséria e a glória da Expansão portuguesa. A recusa pura e simples da existência de um museu, seja das descobertas, da interculturalidade, da viagem, da expansão ou o que quer que seja, é um programa ideológico que propõe uma amputação do passado. Toda e qualquer iniciativa no sentido de expor, mesmo com olhar crítico, a aventura dos portugueses iniciada em 1415 será sempre vista como uma tentativa de veicular uma “história facciosa e que omite parte relevante da verdade histórica”, como defende uma carta de intelectuais portugueses afrodescendentes. A proposta do museu inscrita no programa de Fernando Medina sublinhava, por exemplo, que o museu deveria ter um núcleo que falasse da escravatura ou de outros aspectos “menos positivos” do colonialismo, mas essa salvaguarda não basta. Os autores da carta não só querem condicionar o futuro, o que seria legítimo, como denegar o passado que que cristalizou na “edificação comemorativa de estátuas, monumentos e museus celebradores do colonialismo e da ideologia colonial”.  

Bastaram 20 anos para que historiadores prestigiados como António Hespanha tivesse passado da condição de presidente da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses para a ala dos que se indignam com o uso da palavra “descobrimentos”. Não há aqui nenhum problema. Autores consagrados e insuspeitos de qualquer propensão para o bafio ideológico, como Vitorino Magalhães Godinho ou Jaime Cortesão, usaram-na sem constrangimento porque, no seu tempo, não era susceptível dos anátemas que hoje se lhe colam. As visões da História são sempre condicionadas pelo presente e a glorificação das navegações, descobertas, expansão ou conquista são hoje felizmente temperadas por outras matizes que incorporam as visões do outro e dos seus dramas. Por isso foi importante que tantos intelectuais portugueses se tenham mobilizado para propor uma denominação alternativa para o projecto do museu. Ou para advertir que nenhuma justiça se faria ao passado nem ao presente dos portugueses se o espírito glorificador do Estado Novo o viesse a contaminar.

O que agora está em causa já não são exigências para que o projecto reflicta as novas perspectivas da História e abdique de qualquer veleidade patrioteira ou “lusocêntrica”. O que está em causa é, como escreveu Eduardo Lourenço, a convocação metafórica de um “quase tribunal da Inquisição” para “pôr na pira a história do nosso pequeno país, que não o merece”. É a tentativa de subverter a memória, pegando nos seus capítulos mais negros para a pintar indelevelmente nesse tom. Não se exige um olhar transversal que inclua os dramas humanos do colonialismo em África, na Ásia ou no Brasil: impõe-se uma ideia do passado onde só esses custos existiram. Os que recusam pagar com os seus impostos um museu “construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História” são afinal os mesmos que “exigem” à Câmara de Lisboa “uma aposta séria num Memorial de homenagem às pessoas escravizadas, num Museu do Colonialismo, da Escravatura ou da Resistência Negra”. Não seria possível fazer-se o museu com secções dedicadas ao colonialismo e à escravatura e ao lado erguer-se o tal monumento? Uma hipótese não contemplada. Porque o que subjaz a esta liturgia é uma clara tentativa de subverter uma hegemonia daninha com outra hegemonia daninha. É o irreconciliável “nós” de um lado e “eles” do outro.

Nem vale a pena recuperar as teses da História que alertam para os perigos que a interpretação do passado com os olhos no presente. A escravatura, a pilhagem de recursos, a brutalidade da conquista, o genocídio e a conversão forçada foram processos detestáveis mesmo que na época fossem enquadrados num outro contexto cultural ou de valores. Mas para se perceber tudo, não se pode omitir a existência da escravatura em África antes de os portugueses lá chegarem. E saindo do pano negro que alguns querem tornar exclusivo, há que sublinhar outras facetas da História mais aceitáveis: a descoberta de rotas e de direcções de ventos, as tentativas de miscigenação de Afonso de Albuquerque na Índia, a mudança de hábitos na Europa forçada pelo contacto com os outros, como o hábito do chá, o contributo de palavras banto ou do tupi-guarani para a riqueza do português actual, a admirável arte indo-portuguesa ou a maravilhosa carta do “achamento” do Brasil de Pero Vaz de Caminha. Portugal é o que foi e se não podemos tapar os olhos aos horrores que os portugueses perpetraram, não podemos deixar igualmente de reconhecer a sua intrepidez, coragem, visão, curiosidade e energia que ajudaram a moldar a Europa moderna – e o mundo contemporâneo.  

Um museu sobre Portugal não pode nem deve ser a manifestação depurada de um pretenso elogio nacional nem uma orgia de verdades parciais que nos convide à autoflagelação. Porque, algures entre as duas perspectivas há-de ser possível encontrar um consenso. Serão as visões históricas sedimentadas ao longo de séculos a prevalecer? É um risco. Por difusa que seja, por inquinada que esteja com o patrioteirismo do futebol que faz de Ronaldo o novo D. João II, Portugal é uma nação velha com uma consciência nacional alimentada ao longo de séculos com o fascínio do império. Limemos-lhes as arestas e expurguemo-lo da mentira, do nacionalismo bafiento e da ideologia racial e colonial. Mas não queiram que, de um momento para o outro comecemos a olhar esse período fantástico do nosso passado como um recital exclusivo de horrores. Porque não o foi. Chamem-lhe descobertas, expansão, viagem, encontro ou o que quer que seja, mas não queiram que se passe da glorificação acrítica para a anulação preconceituosa de um período crucial para a definição do que, apesar de tudo, somos e para a imagem que, apesar de tudo, projectamos no mundo. 

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