Há engenharia portuguesa nos comboios mais modernos do mundo

A Nomad Tech é uma empresa participada em 35% pela EMEF que exporta serviços para alguns dos caminhos-de-ferro mais desenvolvidos do mundo. Suíços, alemães, noruegueses, ingleses e australianos estão entre os seus clientes.

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Augusto Costa Franco e Nuno Freitas dirigem a Nomad Tech, da qual são accionistas Adriano Miranda

O jovem engenheiro faz zoom e no écran do computador aparece o local exacto onde se encontram naquele momento um conjunto de locomotivas alemãs que andam pela Europa a rebocar comboios de mercadorias: Alemanha, Holanda, Bélgica, República Checa, Polónia. A liberalização tem destas coisas e no centro da Europa é normal haver companhias ferroviárias a atravessarem as fronteiras de vários países.

“Podemos ver se estão paradas ou a circular e conseguimos monitorizar vários parâmetros do seu funcionamento para detectar eventuais avarias, ou até antecipá-las e, quando recolherem às oficinas, serem logo resolvidas”, explica o técnico que é um dos 21 funcionários da Nomad Tech, uma empresa de tecnologia de ponta vocacionada para a ferrovia.

No pólo da Asprela (Porto), onde a empresa tem a sede (possui ainda instalações na Amadora), é normal, também, monitorizar comboios suburbanos numa cidade australiana. Aquela hora da manhã muito poucos, porque dorme-se na Austrália quando em Portugal se trabalha. E vice-versa. “Às vezes temos reuniões pelo Skype durante a madrugada”, conta Augusto Costa Franco que, juntamente com Nuno Freitas, são os dois engenheiros responsáveis da Nomad Tech, que foi fundada a partir da EMEF, a empresa de manutenção de equipamento ferroviário da CP.

A sua origem remonta ao projecto de alta velocidade que acabou por não avançar em Portugal. Há 10 anos a CP preparava-se para operar com comboios idênticos ao TGV e criou a UMAV (Unidade de Manutenção de Alva Velocidade) que tratou no imediato de cuidar dos Alfas Pendulares que são o material tecnologicamente mais avançado da sua frota. Com o mesmo objectivo, foi criada a Unidade de Inovação e Tecnologia da EMEF.

A aplicação do conceito de Manutenção Centrada na Fidelidade (RCM na nomenclatura inglesa) entusiasmou a dinâmica equipa de jovens engenheiros que então começavam a trabalhar na EMEF. A RCM era uma prática utilizada na indústria aeronáutica que podia ser replicada para os comboios.

Em pouco tempo toda a frota dos pendulares passou a seguir essa metodologia da manutenção em conjunto com a tecnologia da monitorização remota. Tal traduziu-se em ganhos elevados de eficiência e disponibilidade. Havia avarias que se reparavam à distância e outras que já vinham identificadas e reparadas imediatamente nas oficinas. Graças a isso, os ciclos de imobilização, que se querem curtos, permitem uma elevada disponibilidade da frota.

A tecnologia portuguesa chamou primeiro a atenção dos suíços, que também possuíam pendulares iguais aos nossos. Em pouco tempo, a EMEF ensinou-os (a expressão é mesmo essa) a trabalhar com esta metodologia e começou a vender-lhes serviços. E, claro, como a empresa pagava pouco, não foram poucos os seus operários e alguns engenheiros que fizeram as malas e foram trabalhar para a Suíça.

“Dos suíços passámos para os noruegueses e começámos a ver que havia oportunidades de negócio no estrangeiro, mas com a crise e os cortes, e todas as limitações próprias de uma empresa pública, a única oportunidade de continuar a desenvolver este trabalho foi juntarmo-nos à Nomad Digital”, conta Augusto Costa Franco.

A EMEF fez então uma joint venture com aquela empresa de software de comunicações, na altura inglesa, mas que desde há um ano pertence ao universo da francesa Alstom. Surgiu assim a Nomad Tech.

O papel importante dos dois engenheiros portugueses levou a que, à data, os parceiros ingleses propusessem uma repartição de capital em que a Nomad Digital detém 51%, a EMEF 35% e Costa Franco e Nuno Freitas 7% cada um.

“Os 49% portugueses têm força porque possuímos uma grande autonomia de decisão, inclusive na aprovação do orçamento e há cláusulas que, por exemplo, impedem qualquer deslocalização da nossa empresa”, diz Nuno Freitas.

A joint venture facilitou a internacionalização da jovem empresa. Trinta por cento da sua facturação (2,4 milhões em 2017 e três milhões esperados para este ano) são para a própria EMEF, bem como para a Fertagus e metros de Lisboa e Porto. O sócio Nomad Digital/Alstom representa outros 30% do volume de negócios e a poderosa DB (Deutsche Bahn) outro tanto da facturação. Os 10% restantes são vendas directas aos caminhos de ferro da Noruega, Suíça, Finlândia e Alemanha. Mas através da Nomad Digital a empresa portuguesa chega também à Austrália, Estados Unidos (a Amtrak, na Califórnia, também é cliente) e competem até com os próprios japoneses através da Hitachi na Inglaterra.

Uma das chaves do sucesso é o profundo conhecimento que a Nomad Tech tem do funcionamento da ferrovia, visto que metade do pessoal provém da CP e da EMEF. A outra metade veio quase toda directamente das faculdades de engenharia.

“Conhecemos bem a operação ferroviária e sabemos onde estão as dores na manutenção – a segurança, a fiabilidade, a disponibilidade e os custos. Por isso sabemos também encontrar as soluções”, diz Nuno Freitas.

A empresa faz consultoria de gestão da manutenção e tem software embarcado nos comboios que está ligado às oficinas, monitorizando assim o funcionamento de todos os sistemas a bordo. Por exemplo, um comboio pendular possui mais de 250 microprocessadores e tem mais quilómetros de cablagem do que um Airbus.

Antecipar as avarias destas composições pode significar poupanças enormes pois evitam-se os prejuízos decorrentes de comboios atrasados ou suprimidos.

Eficiência energética

A par deste negócio, a empresa desenvolveu um software que faz a monitorização dos dados de consumo de energia e de práticas de condução. Uma experiência que teve início nos suburbanos do Porto e que pode agora ser alargada a toda a frota da CP pois descobriu-se que é possível poupar 10% da energia através de uma condução mais eficiente.

“A reacção dos maquinistas foi espectacular e eles até nos ajudaram a desenvolver um produto – o Ecodriving – que é incorporado num tablet onde eles lêem a curva óptima de consumo de energia à qual procuram ajustar a condução”, explica Costa Franco.

Apesar de terem negócios e parceiros nos países tecnologicamente mais avançados, os dois responsáveis da Nomad Tech entendem que o próximo passo da estratégia da empresa passa por Portugal.

“Há falta de quadros técnicos ferroviários. A Fernave [empresa do grupo CP que chegou a ser detida pelo Metro de Lisboa e pela Carris] produziu pessoal muito qualificado, mas é uma sombra do que era. Gostaríamos de montar uma escola técnica em Portugal, aproveitando a proximidade com a Faculdade de Engenharia e a nossa excelente relação com a EMEF”, diz Costa Franco.

Esta falta de pessoal – de que a EMEF é um excelente exemplo pela negativa – não ocorre só em Portugal. O administrador diz que a DB está a recrutar reformados para não perder know how ferroviário, coisa que já está a acontecer em Portugal.

“Se isso resultar, com pessoal qualificado, não tenho dúvidas que conseguiremos trazer mais negócios para Portugal”, diz.

Produto inovador convence alemães

“Imagine uma pessoa com um coração bom, mas que tem um problema grave numa válvula. Em vez de se fazer um transplante do órgão, o ideal era poder intervir na válvula. Foi isso que fizemos com o conversor de tracção dos motores de comboios”. Nuno Freitas serve-se desta analogia para explicar como é que conceberam um produto que está a fazer furor na Alemanha e tem um grande potencial de exportação.

Tudo começou na linha de Sintra, nos anos da crise. Uma das componentes do conversor de tracção (um equipamento que controla as características da energia eléctrica que os motores recebem) das composições daquela linha foi descontinuada. Com os cortes, perante a impossibilidade de comprar um conversor novo (orçado em meio milhão de euros) para cada composição, a solução imediata foi canibalizar os comboios, retirando peças de uns para outros.

Mas a necessidade aguça o engenho e os técnicos da EMEF conceberam um módulo que pode ser implementado no conversor de tracção. “É resolver o problema da válvula sem mudar o coração”, explica Nuno Freitas.

A criação da Nomad Tech criou a flexibilidade necessária para internacionalizar este produto que encontrou na DB um cliente interessante. Hoje algumas locomotivas alemãs funcionam em período experimental com este produto, cujo software e hardware são inteiramente portugueses. Se tudo correr bem, o potencial de mercado chega às 370 locomotivas.

“Estamos na Liga dos Campeões da electrónica de potência”, diz Costa Franco, sublinhando que o produto foi homologado e certificado e resistiu a todos os testes sem quaisquer problemas.

Além de evitar a compra de um novo conversor de tracção, esta solução permite ainda poupanças de energia de 12,4% no funcionamento de uma locomotiva.

“Na Alemanha já nos disseram que metade da DB está de olhos postos neste projecto e a outra metade com os ouvidos. O mercado potencial é enorme”, diz Costa Franco que, com alguns anos a trabalhar com os alemães, já não estranha que estes confiem na engenharia lusa.

“Os alemães têm mais dinheiro, mas têm muito mais a noção de quanto custa o dinheiro. Têm as suas empresas tecnológicas e até poderiam dinamizar a economia nacional, mas se encontram uma solução mas barata, vêm comprá-la aos portugueses”, conclui.

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