Depois de travar Messi, Islândia acredita em tudo, até nos "oitavos"

Birkir Saevarsson vive o grande momento da sua carreira aos 33 anos. “Ter outro trabalho é o mais habitual do que jogar um Mundial”, diz o lateral que trabalha numa fábrica de sal.

Foto
Adeptos da Islândia a assistirem a um jogo da sua selecção Sergei Karpukhin/Reuters

Aconteça o que acontecer esta terça-feira frente à Croácia já ninguém tira ao futebol islandês a memória de ter travado a Argentina de Lionel Messi no Mundial de estreia da sua história.

A partida foi seguida por 99,6% dos telespectadores da ilha, que vão unir novamente energias para apoiar os “seus rapazes” na longínqua Arena de Rostov. Os oitavos-de-final ficaram mais longe com a derrota frente à Nigéria mas estão ainda à vista. Só o triunfo manterá o sonho.

Um seleccionador que é dentista nas horas vagas; um jogador que trabalha numa fábrica de sal e um guarda-redes que é também realizador de cinema são algumas das estrelas do país com menos habitantes que alguma vez participou num Mundial.

A equipa demonstrou no Euro 2016 que consegue superar barreiras teoricamente intransponíveis e tem capacidade para resistir ao mais gigante oponente. Foi assim quando eliminou a Inglaterra nos oitavos-de-final do Euro 2016 e empatou com Portugal de Ronaldo na fase de grupos. Voltou a prová-lo com a Argentina, em Moscovo.

Os “Strákarnir okkar” (“nossos rapazes”), alcunha da equipa islandesa, são um espelho perfeito da Islândia. Uma ilha que é um dos sítios mais voláteis do planeta, esculpido por vulcões ao longo de milhões de anos e que continua permanentemente a ser criada. Habitá-la sempre foi um enorme desafio e, com o tempo, os islandeses aprenderam a transformar adversidades em vantagens.

Perdida no meio do Atlântico Norte, a tocar o Círculo Polar Ártico, sem riquezas para a cobiça de conquistadores, o natural isolamento da ilha formou e protegeu este povo do exterior. Ao longo de séculos moldaram uma comunidade única, unida, solidária, inseparável, com uma cultura original e homogénea. A Islândia é uma pequena aldeia, onde toda a população tem laços de parentesco. Um estudo genológico, divulgado no início de 2007, indicava que todos os 330 mil habitantes autóctones provêm da mesma árvore familiar.

Desconhecida ou ignorada pelo resto mundo, surgia apenas nas notícias de horário nobre quando algum vulcão entrava em erupção afectando o tráfego aéreo. Mas tudo mudou subitamente no século XXI quando o mundo irrompeu pela ilha e as novas tecnologias relativizaram o seu isolamento. Arrastada pela torrente da economia global onde passou a ser um novo jogador, esta ilha remota teve o poder de causar um impacto à escala planetária no final da primeira década do século.

Os três maiores bancos do país expandiram-se além fronteiras, crescendo muito além da dimensão da economia nacional até entrarem em colapso e arrastarem consigo o mundo para uma crise económica e financeira sem precedentes. O impacto na Islândia foi brutal, varrendo a sua economia e reputação. A lenta recuperação ainda prossegue.

Uma saga moderna

Os feitos da selecção devolveram o orgulho à nação. É este o exemplo que os islandeses querem dar de si próprios. Uma equipa que funciona em bloco, determinada, resiliente e corajosa. Olhos nos olhos do adversário, sem receios. Lutar até ao fim na construção de uma saga moderna. Uma selecção que é uma extensão desta grande família insular.

Em campo vê-se a alma islandesa, com a energia bruta dos elementos que formaram a ilha e o seu povo. Aguenta a pressão do adversário, defende a sua baliza com toda a energia e voluntarismo antes de lançar um súbito e fulminante contragolpe na área contrária, como se se tratasse de uma erupção vulcânica. A sua súbita popularidade internacional desde o Euro 2016 contribuiu decisivamente para pôr o país no mapa e estimular uma inesperada nova vaga de turismo.

Em Gelendzhik, uma cidade turística à beira do mar Negro, onde a Islândia montou o seu quartel-general, longe dos holofotes mediáticos, conta-se uma história que é paradigmática dos laços apertados que a equipa mantém com os seus adeptos. Antes de todos os jogos na capital Reiquejavique, o seleccionador Heimir Hallgrimsson reúne-se com um dos mais fiéis grupos de adeptos num bar local. Revela-lhes a equipa titular e a estratégia confidencial estabelecida para cada jogo, envolvendo-os num segredo e num laço de confiança sagrado.

O treinador é um homem afável e bem-disposto. No dia da partida para a Rússia protagonizou um incidente embaraçoso. Por engano, colocou a sua mala, com todos os planos traçados para o Mundial, num autocarro errado, que seguia para o Norte da Islândia e não para o aeroporto. Conseguiu recuperá-la com a ajuda da polícia, mas tornou-se alvo de gozo dos seus jogadores.

“Foi bom para os jogadores se poderem rir de mim”, disse já em Gelendzhik, esperando que este seja o seu único erro no torneio. O seu adjunto acabou por revelar depois que a mala continha um computador onde estavam guardados “20 anos de trabalho”.

Realizador travou Messi

Em sóbria euforia tem vivido o guarda-redes e realizador de cinema Hannes Halldórsson, depois de ter defendido um penalti apontado por Lionel Messi. “Foi um sonho tornado realidade”, admitiu, confessando o nervosismo naquele momento decisivo. “Primeiro pensei: ‘Oh merda, vou ter de defender um penalti de Messi.” Travou mesmo o remate e na Islândia festejou-se como uma vitória.

Por motivos idênticos, também o defesa Birkir Saevarsson vive o grande momento da sua carreira aos 33 anos. É um dos 100 jogadores profissionais da Islândia, mas divide o futebol com o trabalho numa fábrica de sal, onde passa nove horas diárias e cinco dias por semana. Jogar no Valur, clube local, possibilita esta extravagância.

Lateral titular da selecção, teve um papel crucial para acinzentar a exibição de Messi, como já fizera no Euro 2016 com Cristiano Ronaldo e Sterling, estrela da Inglaterra. Teve de pedir autorização ao empregador para viajar para a Rússia e o patrão só não o terá levado ao colo para o avião por pudor. “Ter outro trabalho é o mais habitual para um jogador islandês. É mais normal do que jogar um Mundial”, confessa: “O futebol é o melhor trabalho que podes ter, mas não é a vida real.”

Os jogadores islandeses têm sabido lidar com humildade com o sucesso e todo o mediatismo à volta da equipa, mesmo o médio Rúrik Gíslason, de 30 anos, que viu a sua fama crescer sem precedentes nas redes sociais. Chegou ao Mundial com “apenas” 30 mil seguidores no Instagram que imediatamente após o jogo com a Argentina aumentaram para mais de um milhão. Muitos são mulheres argentinas que comentam a sua aparência, comparando-o com o actor Brad Pitt.

Tudo ou nada

Ninguém irá tirar o Mundial da Rússia ou o Euro 2016 da cabeça dos islandeses por muitos anos, mas a saga poderá não terminar em Rostov-on-Don. A selecção insular já venceu os croatas, nas quatro partidas que disputaram entre si nos últimos quatro anos. “Dizemos muitas vezes que somos como um casal – tentamos divorciar-nos, mas encontramo-nos sempre de novo”, brincou o seleccionador inglês, referindo-se a esta partida com a Croácia.

E as boas relações que mantém com a formação dos Balcãs podem até ser uma grande vantagem. O jogo entre a Croácia e a Argentina foi particularmente duro, como muitos jogadores sul-americanos a usarem excessiva violência à medida que o resultado se ia avolumando até ao 3-0 final.

Com o primeiro lugar do Grupo D garantido, os croatas bem podem facilitar e prescindir de muitos dos habituais titulares. Um triunfo da Islândia não faria muita mossa. Mesmo assim, para a equipa de Hallgrimsson chegar aos oitavos-de-final necessita que a Nigéria não vença ou empate com os argentinos – e que os sul-americanos, no caso de triunfarem que o façam com menos golos do que os islandeses.

É complicado mas não impossível. O mais difícil foi mesmo chegar à Rússia.

 

Sugerir correcção
Comentar