Memórias e cantoneiros

Num tempo tão tecnológico, com torres de vigia no cimo dos montes, drones, robôs, patrulhas moveis, satélites e tantas formas de comunicação virtual seria dramático que o “inferno” portador do medo e da morte voltasse a incendiar Portugal!

Há cerca de um ano as florestas arderam nos pinhais do interior, como se do “inferno” de Dante se tratasse, e, ninguém se assumiu como culpado. Quase todos alijaram as culpas para cima de terceiros e, em certas ocasiões, alguns comentadores especializados em bodes expiatórios, quase que insinuaram serem afinal os envelhecidos proprietários das pequenas matas de pinho e eucalipto os culpados, porque não as tinham limpo a tempo. As imagens das televisões mostraram os restos de carros calcinados abandonados na estrada, os rostos da impotência e do medo e, mais chocante, a confusão e o caos instalados, comunicações sem destino etc. Mas como sempre, os inquéritos exigidos pelos mais altos dirigentes do País tardam em esclarecer as causas, as falhas e quem tem a responsabilidade política e ética sobre a gestão dos recursos florestais do País. Como sempre a culpa corre o risco de morrer solteira. Lembro que, aquando da tragédia da ponte de Entre –os - Rios, Jorge Coelho, então ministro, assumiu com dignidade a responsabilidade política da tragédia e demitiu-se. Aqui a culpa não morreu solteira.

Se bem me lembro, como escrevia Vitorino Nemésio, quando era miúdo, na década de cinquenta e princípios de sessenta existiam, dedicados à limpeza das bermas das estradas, os chamados cantoneiros, corpo especial que dependia da Junta Autónoma das Estradas. Conheci nessa altura o Joaquim da Veiga, que todos os dias saía com a sua lancheira, e com a sachola e a foice e lá ia caminhando de terra em terra desbastando ervas, matos e silvados e cortando ramadas de pinheiros e azinheiras que se debruçavam por cima das estradas. Também plantava arvores dos viveiros da Junta.

E havia guardas florestais que caminhavam nos carreiros da floresta para detetarem incidentes, incêndios e outros danos e também guarda - rios que percorriam as margens dos rios para impedirem a pesca clandestina e ilegal e eventuais focos de poluição.

Nesse tempo as aldeias tinham gente, novos, velhos e homens e mulheres de trabalho. E quando o Joaquim da Veiga muitas vezes dava sinal que um início de fogo tinha começado algures, os sinos das aldeias lembravam ao povo a solidariedade fraterna no combate ao incêndio. Nessa altura as carumas, os fetos e os silvados serviam para fazer a cama dos animais, ovelhas, porcos e vacas. E os vizinhos participavam na limpeza das matas uns dos outros recebendo como paga o trabalho dos vizinhos que já tinham beneficiado das limpezas.

Eram tempos em que o interior tinha gente, muita gente que, por falta de condições e infraestruturas, começaram a abandonar as terras, deixando de plantar as leiras e fugindo para a emigração, quer para o litoral, quer para o estrangeiro, neste caso, muitas vezes, a salto.

É verdade que o problema já vinha do anterior regime, mas o Estado Democrático não soube ou não pode fixar as populações, apesar dos pacotes financeiros que depois da adesão começaram a financiar o desenvolvimento de Portugal. Essa responsabilidade cabia, sem sombra de dúvida, aos governos da democracia que nunca conseguiram estancar a debandada das populações das aldeias. Para trás ficaram os mais envelhecidos que, de vez em quando, na época do Verão, recebem as visitas dos filhos e netos da emigração.

Eu sei que não é possível, nem desejável, voltar ao tempo dos cantoneiros. Mas os meios instalados, os homens preparados, sejam bombeiros, proteção civil, autoridades locais e municipais e os ministros das áreas não conseguirão de forma coordenada, consolidar uma política de fixação das populações, sobretudo de jovens, e preparar uma estratégia de combate a todas as tragédias, sejam elas de origem natural, seja elas de origem humana?

Num tempo tão tecnológico, com torres de vigia no cimo dos montes, drones, robôs, patrulhas moveis, satélites e tantas formas de comunicação virtual seria dramático que o “inferno” portador do medo e da morte voltasse a incendiar Portugal!

Será que o que já foi feito, depois da tragédia, será suficiente? Qual o valor do país do interior? Alguém sabe?

CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais - www.cidadaniasocial.pt

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