Bruno Mars trouxe fogo-de-artifício. E o artifício pegou fogo no Rock in Rio

Bruno Mars encantou, Anitta provocou e Demi Lovato decepcionou, numa enchente de domingo no Rock in Rio com demasiadas filas para os 85 mil espectadores presentes.

Rock in Rio Lisboa
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Bruno Mars, Rock in Rio Lisboa 2018, Rock in Rio Lisboa, Parque Bela Vista
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Demi Lovato LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
Rock in Rio Lisboa, Agência de Notícias Lusa
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Anitta e as suas bailarinas LUSA/JOSÉ SENA GOULÃO
Anitta, Parque Bela Vista, Bruno Mars, Rock in Rio
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Bruno Mars, Beyoncé, Lady Gaga, Músico
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Bruno Mars nos Grammy de Janeiro de 2018 REUTERS/Lucas Jackson

A questão não é entre o fogo-de-artifício e a autenticidade, seja lá o que isso for para cada um de nós. É se o fogo-de-artifício corresponde a uma encenação (algo que todos os artistas praticam, nem que seja para representar autenticidade) que é capaz de transmitir qualquer coisa de estimulante.

No caso de Bruno Mars, este domingo no Rock in Rio, houve mesmo fogo-de-artifício. Daquele que sobe aos céus. E também simbólico, para voltar à frase que ficou famosa o ano passado dita por Salvador Sobral. A questão é que mesmo entre quem projecta fogo-de-artifício há gradações. Da nulidade à demonstração de capacidade, há de tudo. No caso de Bruno Mars, o homem sabe de fogo-de-artifício. O artifício pega fogo. Não nos eleva aos céus, mas é suficientemente eficaz, com 85 mil espectadores, segundo a organização, a fazerem a festa com ele e o seu colectivo de músicos e performers.

É isso. Peter Hernandez, ou seja, Bruno Mars, de 32 anos de idade, invariavelmente envergando roupa desportiva, não é banha-da-cobra. Corresponde a um modelo de celebridade bem definido: alguém com talento, que se esforça por tirar partido dele e é capaz de reproduzir modelos já ensaiados por muitos outros (de James Brown a Michael Jackson), resultando daí uma espécie de celebração à volta do funk, R&B e soul, sem nenhum rasgo criativo marciano, é verdade, mas com os pés bem assentes na terra.

Há uma noção de espectáculo bem desenvolvido, na forma como canta e dança, e interage com os seus exímios músicos, e também na maneira como todo o desenho de palco – com destaque para extravagante jogo de luzes – acaba por criar o envolvimento possível junto de uma multidão a perder de vista. O resto é com as canções que toda a gente conhece, mistura de temas de balanço físico (de Locked out of heaven a Finesse, passando por That’s what I like a Marry me) e momentos de sentimentalismo oferecidos por baladas interpretadas com comoção, como em Versace on the floor ou em When I was your man, só voz, piano e alvoroço emocional à solta, com imensos telemóveis no ar.

Em palco, há espaço para os músicos mostrarem virtuosismo, com solos de bateria, de guitarra ou em duelos de metais bem elaborados, e claro para a estrela do concerto brilhar. Seja para mostrar os dotes vocais. Os passos de dança inspirados em James Brown. Ou a forma como também é capaz de tocar piano ou guitarra. Por vezes é tudo muito demonstrativo. Falta algum rasgo. Mas é pragmático, rigoroso e eficiente. As formas soul-funk são aligeiradas. Não há desafio. Mas criam-se zonas de conforto.

E o público agradece. Aliás, parte do espectáculo resulta dessa interacção que se estabelece com ele. Os gritos entusiastas à beira da veneração. As vozes entoadas que se reúnem à volta de todas as canções. Os telemóveis no ar. As trocas de devoção mútuas. Procura-se a festa e ela acontece.

Por vezes, lembrámo-nos de um outro concerto naquele mesmo local em 2014, o de Justin Timberlake. Tal como naquele caso, assistiu-se a hora e meia de espectáculo que não tem mundos novos para dar ao mundo, mas nitidamente o havaiano é alguém que interage com os valores clássicos do entretenimento, fazendo-o com presteza, o que não é pouco.

Não é o novo Michael Jackson, e muito menos um Prince actualizado, mas é alguém que pega nesse legado de forma lúdica, transmitindo-o com desenvoltura a uma multidão que, na sua esmagadora maioria, não teve oportunidade de interagir com os arquétipos que inspiraram o ídolo.

Já depois de ter saído de cena e regressado perante a gritaria generalizada, apresentou Uptown funk, uma espécie de enciclopédia do que se tinha ouvido antes, com o baixo pulsante, os sopros aos saltos, as palmas a compasso, os confetti e os foguetes no ar, a mostrarem que, de vez em quando, muito de vez em quando, o fogo-de-artifício faz sentido.

“Os funkeiros do Brasil”

Antes, no palco principal, duas estreias em solo português, com a americana Demi Lovato e a brasileira Anitta. Como muitas outras cantoras americanas das últimas décadas (de Britney Spears a Miley Cyrus), a primeira foi revelada pelo universo Disney, antes de se tornar numa cantora pop de massas. E para já não existe nada nela que a identifique. É tudo demasiado genérico. A questão não é se sabe cantar, segundo as regras referenciais. Mas sim a forma indistinta como tudo é apresentado e a música é domesticada, incapaz de transmitir uma aragem de liberdade.

Mas verdade seja dita, ninguém se queixou, vitoriando a cantora e cantando com ela temas como Daddy issues, Stone cold ou Concentrate, que apostam invariavelmente em lugares-comuns da pop mais indistinta, com maneirismos vocais que se podem por vezes confundir com intensidade emocional ou solos de guitarras esvaziados de conteúdo. Em Échame la culpa são os ritmos latinos, na ordem do dia, que entram em acção, enquanto em Neon lights é a electrónica de dança mais vulgarizada que é abordada, para tudo terminar com ela ao piano, comovida, a interpretar a autobiográfica canção Sober, numa prestação generosa, mas a que falta personalidade.

Já a brasileira, fenómeno de popularidade naquele país, percebe-se que tenta agora apostar numa carreira noutros mercados. O que gera uma dupla sensação. A primeira metade do espectáculo é mais domada, com passagens pelos sons do reggaeton ou do dancehall, ou por piscadelas de olho a outras figuras (da americana Mariah Carey à portuguesa Blaya, passando por Tom Jobim), com a aura de transgressora a ficar-se por uma trupe de bailarinos onde tanto há figuras esbeltas como outras menos conformes aos padrões normalizadores. Ainda assim, o lado sexual de algumas canções resulta apenas em sensualidade padronizada.  

A segunda metade acaba por ser mais estimulante, com ela a dizer “que é um dia histórico”, porque está ali a representar “os funkeiros do Brasil”. A banda é substituída por um virtuoso DJ, um mural artístico é desenhado em tempo real, no palco dança-se e por momentos os bailes funk do Rio de Janeiro parecem aportar ao espaço. Mas, ainda assim, na sua versão amansada. Os ritmos gordurosos e digitalizados estão lá, existe um aroma de libertinagem no ar, mas é pouco crível que os mais desafiantes criadores de baile funk se sintam representados por Annita. Quando muito, ela mostra uma versão consensual do género, com alguns momentos de picante, a um público que não tem sido submetido a esses géneros na última década, parecendo mais interessada, nesta fase, em transformar canções de sexo em histórias de amor, forma de conquistar um público mais transversal.

A transgressão não é, aliás, uma das senhas do Rock in Rio, que se assume como festival familiar. Ainda assim, à hora de jantar, havia rap com Mike Lyte, que cantava Cocó é tabu, com a imagem do dito nos ecrãs, enquanto, ao lado, uma fila de pessoas esperava por comida, naquele que deve ter sido um dos momentos de, digamos assim, maior rebeldia, proporcionado pela cultura da Internet que se celebrou no digital stage.

Por falar em filas, houve-as para todas as funções: alimentação, diversão e necessidades fisiológicas. Nitidamente, 85 mil espectadores é um número complicado de gerir, tendo em atenção a oferta do lugar, e também as condições de visibilidade do palco principal, com muita gente a queixar-se aquando da enchente para ver Bruno Mars. De resto, o festival continua igual a outros anos, mistura de parque de diversões e centro comercial ao ar livre, com a música a figurar como chamariz. 

No domingo, dançou-se em todos os palcos. Por exemplo, com o dancehall dos portugueses Supa Squad, no palco situado no vale, ou com o funaná e batuque dos cabo-verdianos Ferro Gaita, no cenário dedicado às sonoridades africanizadas. Os últimos nunca falham. Sete músicos em ebulição constante à volta de vozes e ritmos esfuziantes e serpenteantes. Andam por aí há muitos anos a pegar fogo a qualquer plateia que lhes aparece à frente. Também se encenam. Mas sem fogo-de-artifício.

O Rock in Rio regressará no próximo fim-de-semana com Kate Perry, Jessie J, The Killers, Chemical Brothers ou Xutos & Pontapés.

Nota de edição: As fotografias que chegaram a acompanhar este texto foram entretanto retiradas devido a imposição da organização quanto ao seu uso editorial.

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