Trump 0, Merkel 20

Resta-nos a chanceler. Pela razão simples de que ela continua a acreditar que a Europa é hoje tão ou mais fundamental para defender os interesses de todos e de cada um.

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

1. Os factos são conhecidos. A crueldade e o cinismo da Administração Trump passou todos os limites. A separação das crianças dos país que entraram ilegalmente nos Estados Unidos nos últimos meses, muitos deles para pedir asilo político, fugidos da violência que grassa no México e em muitos países da América Central, desencadeou uma polémica raras vezes vista, apesar das polémicas com que este Presidente gosta de governar. Trump foi longe demais? Teve de corrigir o tiro, coisa que raramente está disposto a fazer? Ou apenas utilizou o seu método habitual: radicalizar o debate até reduzi-lo ao preto e ao branco, apagando todas as gradações do cinzento. Basicamente, foi isso que aconteceu. “Os Estados Unidos da América não são isto.” Também são. Mas talvez haja aqui uma mudança de qualidade. Antes, a frase mais ouvida (também na Europa) assentava na ideia de que a democracia americana era suficientemente forte para resistir às suas investidas. Hoje, esse argumento começa a ser posto em causa. Trump está a destruir à picareta a ordem internacional liberal que o seu pais construiu. Estará provavelmente a tentar destruir a democracia americana, que se viu sempre a si própria como a luz que iluminava os povos do mundo? A cidade no alto da colina? A nação excepcional e indispensável.

2. Nas páginas do Washington Post, o último artigo de Anne Applebaum é altamente recomendável. A colunista e historiadora dá uma nova dimensão ao que se está a passar na América, que ilumina muitas das perguntas angustiantes que se colocam a muita gente. Referindo-se aos regimes totalitários e ditatoriais do século passado, que se impuserem em todas as culturas e todas as latitudes, da Alemanha ao Camboja, a autora escreve: “Todos esses regimes tinham uma coisa em comum: a obsessão a que um académico francês, escrevendo sobre o Camboja, chamou ‘a mania de classificar e eliminar elementos diferentes da sociedade’.” Primeiro, cria-se o terreno para a violência contra um determinado grupo — étnico, económico, político — “que foi criada através de uma forma particular de linguagem”. Para Hitler, os judeus eram piolhos. Para Estaline, os opositores eram “vermes”. A colunista adverte que não está a comparar Trump a Hitler, obviamente, “apenas a alertar para que ele trouxe de volta “a mania das classificações”. Refugiados são iguais a imigrantes ilegais, que são iguais ao MS-13, um gangue conhecido pela sua violência. São “violentos, violadores, criminosos”. “Os democratas querem infestar o nosso país com eles.” “Infestação” ganha o seu verdadeiro sentido. Não é uma palavra dita por acaso. É este o novo debate. É por isso que começa a ser difícil continuar a dizer que a democracia americana acabará por vencer este Presidente.

Madeleine Albright acaba de publicar um livro a que chamou Fascismo. Não. Não é uma diatribe contra Trump da antiga secretária de Estado de Bill Clinton. A seguir à palavra maldita, vem: “Um alerta”. O livro resume a história do fascismo na Europa, desde o início do século. Não é o resultado de um golpe militar ou de um ditador, mesmo que possa vir a ter esse resultado. É um movimento ideológico que nasce de baixo para cima e se vai entranhando no pensamento comum até se transformar em violência. É também a história que ela própria viveu, nascida na Checoslováquia e duas vezes na condição de refugiada, primeiro quando Hitler ocupou os Sudetos e se instalou no Castelo de Praga; depois, com a derrota nazi, quando o Exército Vermelho impôs em 1948 um regime comunista. Desta vez, a fuga foi definitiva.

3. Como sempre aconteceu no passado, as grandes correntes políticas que operam grandes mudanças atravessam o Atlântico a uma velocidade surpreendente. Reagan e Thatcher com a revolução conservadora; Clinton e Blair com a “terceira via”. Trump tem hoje espalhados por quase todos os países europeus os seus epígonos, os seus admiradores, os “pequenos Trump” que descobriram, alguns depois de Putin, um novo aliado na luta para subverter as democracias liberais europeias. A vaga tornou-se avassaladora. De repente, o debate sobre a reforma da zona euro quase desapareceu dos holofotes, para abrir outro, urgente, radical, sobre a imigração. Em muitos países europeus, os movimentos populistas e nacionalistas já criaram raízes. Governam em Roma. A linguagem também é importante. Também se insinua. O tema em torno do qual se definem as escolhas dos eleitores deixou de ser a economia para passar a ser os “outros”, os que ameaçam a “cristandade branca”, na expressão de uma académica francesa, citada pelo Monde. As identidades regressam. Paul Taylor lembra no Politico que foi a globalização e a austeridade que fez implodir o centro-esquerda em muitos países. É a imigração que se arrisca a ditar o mesmo destino ao centro-direita. Seria, como é bom de ver, o prenúncio de uma catástrofe. A extrema-direita é contagiosa. Em França, os republicanos de Sarkozy, feridos de morte nas eleições presidenciais e legislativas, abraçam cada vez mais as bandeiras de Le Pen. “A França tem de continuar a ser a França”, diz o seu actual líder, Wauquier. Na Áustria, Sebastian Kurz, 31 anos de idade, governa com a extrema-direita e não tem qualquer pudor em afirmar-se como um aliado de Roma e de Budapeste. Salvini ganha terreno todos os dias. Os exemplos multiplicam-se.

4. Angela Merkel torna-se o alvo de todas as críticas, apenas porque não abdica das suas convicções. Trump não perde uma oportunidade para atacá-la. Começa a ter demasiados seguidores europeus. Precisamente ela que é, de longe, o último baluarte de uma Europa democrática, liberal, tolerante, unida e aberta ao mundo. Os analistas vaticinam a sua morte política como se fosse apenas uma questão interna da Alemanha. Está enfraquecida. Pode cair. Exageram, possivelmente. A chanceler tem o apoio de Macron e dos países europeus que ainda fazem frente com ela na defesa da Europa. Portugal, Espanha, Suécia, Luxemburgo, ou a própria Grécia de Tsipras, que ela ajudou a transformar num honesto social-democrata europeísta. Deu-lhe a mão quando foi preciso. Citando um diplomata francês, falando para o EUobserver, “é ela que consegue manter um difícil equilíbrio europeu” essencial para combater as forças centrífugas que ameaça a própria integração.

Merkel mantém-se firme na defesa das suas convicções, o que é nos dias de hoje uma raridade. Precisa de toda a ajuda possível, na cimeira “impossível” que todos lhe prognosticam, no final desta semana. Tem de regressar a Berlim com as bases daquilo que defende: uma abordagem europeia para enfrentar a crise dos refugiados. No curto e no longo prazo. Tarefa ciclópica.

O pior que poderia acontecer à Europa, como aos EUA, seria a tentação de desvalorizar o problema das identidades, que ainda não são assassinas. Os belos planos de Bruxelas não ajudam nada. Merkel parte da realidade e consegue encontrar em muitas capitais uma base de diálogo. Macron precisa de a apoiar de forma muito mais explícita. E deve-lhe alguma coisa, que ela está a pagar internamente. Quando a chanceler aceitou a ideia de um orçamento próprio da zona euro, deu um novo pretexto aos seu adversários internos. E depois há a Holanda, que se tornou a vanguarda de outro tipo de preconceito “étnico” ou político: a divisão entre o Norte e o Sul. Rutte é o maior adversário do orçamento da zona euro. Lidera os países do Norte contra qualquer nova partilha de risco e de soberania.

Resta-nos a chanceler. Ouvi-la em Munique durante as “jornadas de estudo” do PPE foi um bálsamo para qualquer alma europeia. Pela razão simples de que ela continua a acreditar que a Europa é hoje tão ou mais fundamental para defender os interesses de todos e de cada um e que a aliança franco-alemã continua a ser vital para a Alemanha. Sem um pingo de cedência às ideias em moda. Mas também sem ilusões sobre o caminho que tem pela frente. Tal como nos Estados Unidos, é imenso o que está em causa, incluindo o bem mais precioso: a democracia. Tudo muda em menos de um ápice. Tudo pode mudar.

Sugerir correcção
Ler 14 comentários