Couto, a mãe da bisnaga icónica faz cem anos

A Couto nasceu no Porto e comemora o seu centenário no próximo dia 29 com a abertura da primeira loja no país na mesma cidade.

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Nelson Garrido

A bisnaga era amarela, branca e preta. Durante décadas foi um sucesso, era portuguesa e “andava na boca de toda a gente”, dizia o anúncio à pasta medicinal Couto. Depois, como tudo, caiu no esquecimento, mas o regresso foi sendo construído devagarinho. A Couto celebra cem anos de vida e vai abrir a sua primeira loja na cidade que a viu nascer, o Porto.

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A bisnaga era amarela, branca e preta. Durante décadas foi um sucesso, era portuguesa e “andava na boca de toda a gente”, dizia o anúncio à pasta medicinal Couto. Depois, como tudo, caiu no esquecimento, mas o regresso foi sendo construído devagarinho. A Couto celebra cem anos de vida e vai abrir a sua primeira loja na cidade que a viu nascer, o Porto.

A história da Couto começa na farmácia com o mesmo nome ainda havia rastilhos da Primeira Guerra e Alberto Gomes da Silva, actual dono da empresa, não era nascido. Com menos 20 anos do que a empresa, o proprietário viria a passar ali uma vida inteira. Hoje, com 80 anos, recorda ao P2 as histórias que ouvia em pequeno, do tio Alberto Couto, vindo do Brasil, que queria muito comprar uma farmácia e fez logo sociedade com o dono de um estabelecimento que ficava no Largo de São Domingos, no Porto, de onde a fábrica se viria a mudar, depois de 2000, para a outra margem do rio Douro,Vila Nova de Gaia. 

Lembra-se que era o tio quem fazia os medicamentos “à moda antiga” e que, em 1932, criou a pasta medicinal Couto com um amigo brasileiro que era dentista. Rapidamente se tornou um sucesso, afinal, o produto “surgiu numa altura de grande escassez de marcas internacionais e obteve notoriedade quando não havia grandes opções. Resistiu à erosão do tempo com um design de marca que se desenvolveu sem se deixar influenciar pelas outras pastas dentífricas de grande consumo à venda”, contextualiza Carlos Coelho, especialista de marcas, referindo que a crise económica que assolou o país, “nos levou a olhar para trás e ir buscar estas marcas que viviam sobretudo na nossa memória”.

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O casal Alberto Gomes da Silva, sobrinho do fundador, e Maria Alexandra Gomes da Silva, directora comercial da Couto e responsável pelo impulso dado à marca com a introdução de novos produtos Nelson Garrido

Carlos Coelho defende mesmo que “a Couto é a rainha das marcas adormecidas e [a empresária] Catarina Portas foi uma das agentes de 'desadormecimento', porque depois do 25 de Abril o país abriu-se à modernização europeia” que mexeu com as marcas nacionais. “A Catarina fez um trabalho de memória e colocou à venda marcas como um culto do país”, realça, referindo que “esses produtos são muito importantes porque são agentes económicos, mas representam um papel muito importante na nossa história social e económica”. E aqui o especialista coloca a grande questão: “O desafio é o que se faz a seguir numa marca em que o volume de negócios não é grande, mas é muito grande na contribuição que teve para a importância de preservar as marcas portuguesas”.

Marcas como a Couto têm o “grande desafio de construir memórias de futuro” para que daqui a 20 ou 30 anos as pessoas ainda as recordem. E aí a Couto teve um papel notável com os anúncios na televisão e nos jornais, que ainda estão na memória de grande parte dos portugueses.

Marca em crescimento

Como produto medicinal, a pasta combatia os problemas nas gengivas que eram provocados, por exemplo, pela sífilis, uma doença sexualmente transmissível. “A sífilis atacava as gengivas e os dentes caiam. Esse médico dentista disse logo ao meu tio que a solução era o clorato de potássio que depois introduziram na composição da pasta”, lembra Alberto Gomes da Silva rodeado pelos produtos da marca. “Lavava-se os dentes com a pasta Couto e ficava o problema resolvido”, resume, entusiasmado.

Ele, que cresceu com a bisnaga amarela no lavatório lá de casa onde se lia “pasta medicinal Couto” em fundo preto, continua a tê-la por todo o lado. Na fábrica há réplicas em tamanho gigante, imagens emolduradas e penduradas nas paredes dos vários anúncios que a marca foi desenvolvendo e, claro, centenas e centenas de bisnagas que são produzidas na sala de fabrico, ao lado do escritório. “Couto” é a palavra mais vezes escrita nas embalagens e sabonetes, pousadas nas prateleiras logo à entrada da fábrica.

Alberto Gomes da Silva olha para trás e encontra na sua persistência e no amor que nutre pela empresa a explicação para esta se manter ao longo de cem anos. Só em 2017, a Couto facturou um total de 940 mil euros, prevendo crescer mais este ano. No ano passado vendeu 700 mil unidades de pasta Couto. “Cheguei a vender dois milhões de bisnagas em 2000 e depois começou a decair. Mas mesmo assim, ainda é o produto que mais se vende”, conta.

“As pessoas eram apaixonadas pela pasta”, diz, por seu lado, a mulher Maria Alexandra Gomes da Silva, directora comercial da Couto e responsável pelo impulso dado à marca com a introdução de novos produtos, alguns dos quais serão lançados agora para comemorar os 100 anos da Couto – água de colónia, after shave, creme de barbear, gel de banho, sabonete e leite corporal. “Será a nossa linha Primus. A única coisa que não é feita aqui na fábrica é o sabonete”, realça a directora comercial. A marca vende para Espanha, Itália, Angola, Moçambique, Cabo Verde e EUA.

O empresário lembra que em pequeno passava as férias na antiga fábrica, além de ver os produtos a serem fabricados, também os embalava. A Couto não produzia só a pasta dentífrica, mas também outros produtos farmacêuticos, como o óleo de fígado de bacalhau. “Sabia mesmo muito mal. Era um tónico fortificante que o médico receitava, quase toda gente tomava. Tinha resultados no tratamento da tuberculose pulmonar, escrófulas, raquitismo e nas infecções características da fraqueza geral”, lê-se na biografia do empresário que a mulher mandou fazer em Setembro de 2017 para “dar a conhecer os aspectos essenciais do percurso de vida” do marido e “mais sobre o homem” com quem casou. É neste livro que passa em revista como a Couto começou e cresceu.

“Olhe que, quando eu era pequeno, não havia caixas de pastilhas como há hoje, nem se compravam os medicamentos aos laboratórios.” Era tudo feito na oficina da farmácia: “O médico escrevia a receita e a farmácia aviava, ou seja, preparava o xarope, os supositórios ou a pomada.” Alberto Gomes da Silva lembra-se bem de, aos 17 anos, fazer pomadas. “Misturava-se o pozinho e o líquido, e o farmacêutico lá fazia o medicamento”, recorda, enquanto tira da gaveta um caderno de apontamentos, como se fosse um tesouro com mais de 70 anos, que era do tio, o fundador da Couto, com dezenas de receitas de medicamentos e outros produtos. O tio escrevia as fórmulas com a composição explicada tim-tim-por-tim, como a do famoso Restaurador Olex que fez grande furor e fica guardada em segredo naquele caderno e na memória de quem trabalha na empresa. 

Já estavam na nova fábrica, em Vila Nova de Gaia, quando o acetato de chumbo foi proibido na composição do Restaurador Olex e substituído por outra substância. Ainda hoje é possível ver no Youtube o anúncio onde se ouve uma voz off a dizer que “um preto de cabeleira loura ou um branco de carapinha não é natural. O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu. Usando diariamente o Restaurador Olex dá ao seu cabelo a sua cor primitiva”. Nos próximos tempos não se deve ver anúncios da Couto como este, não faz parte dos planos da empresa, declara a directora comercial.

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A icónica bisnaga apela ao saudosismo, mas também a um "desejo de memória" Nelson Garrido

O empresário passa umas páginas à frente, suspira fundo e sorri de saudosismo, referindo: “Olhe aqui o lombrigol que fazíamos para atacar as lombrigas. Hoje em dia, já não se faz nada disto.” E vai lendo em voz alta a fórmula: “mil gramas de óleo, mais 20 gramas de essência de mercúrio e duas gramas de clorofórmio”. Depois folheia o caderno de folhas amareladas, marcadas pelo passar dos anos, até parar nas “mil gramas de vaselina, mais 0,03 de corante e 15 de essência própria para fazer brilhantina sólida”. Ou na fórmula de verniz para as unhas com a respectiva explicação. Mas por essa altura, elucida, “já havia medicamentos feitos dos laboratórios”. 

Da farmácia à cosmética

“Se lavar os dentes com a nossa pasta, sente logo a diferença, porque evita e trata as doenças dos dentes”, garante o empresário. “Não há bactéria que resista. E se tiver aftas na boca, ponha um bocadinho de pasta e deixe ficar que vai ver que, no outro dia, desapareceram”, aconselha Ana Teixeira, 63 anos, a funcionária mais antiga da empresa já com 44 anos de casa. De touca na cabeça, bata e calça branca vestidas, Ana vai desfiando, muito despachada, como aos 18 anos “embrulhava a pasta Couto em celofane, colava os rótulos à mão e punha o selo medicinal que era obrigatório na altura”. Agora já não se faz assim. Mas Ana Teixeira não é do tempo em que, acrescenta Alberto Gomes da Silva, “se enchia à mão uma bisnaga de cada vez com a ajuda de uma espátula”. Agora as máquinas fazem essa tarefa desde o enchimento até o produto estar pronto para sair da fábrica. 

Quando Ana Teixeira começou a trabalhar, além da pasta dentrífica, já se faziam outros produtos como a Vaselina Pura, o Creme Desodorizante e a Água Oxigenada. A Couto chegou a ter três dezenas de funcionários, agora são cerca de uma dezena, e quase todos "fazem parte da mobília", como Isabel Moreira, de 59 anos, que há 42 é empregada de escritório. “Na altura que entrei, havia a pasta dentífrica, o Restaurador Olex e o Petróleo Olex”, recorda. “Está a ver esta máquina de embalagem? Veio de lá [da primeira fábrica]. Tem 35 anos”, aponta a funcionária. Outras trabalhadoras estão à volta das máquinas que fabricam a pasta – esta esteve seis dias em quarentena. “É o tempo do controlo microbiológico sair”, justifica Claúdia França, directora técnica, responsável pelo design, desenvolvimento e controlo da qualidade dos produtos. 

Antes de ser produzido, todos os novos produtos passam pelas mãos de Claúdia França, licenciada em ciências farmacêuticas com pós-graduação em dermocosmética e marketing. “Faço a fórmula do início ao fim. Primeiro penso nas matérias-primas que a Couto usa habitualmente e depois desenvolvo. Tenho ideia do aroma e peço amostras a vários fornecedores de perfumes”, descreve enquanto faz uma visita guiada ao laboratório onde faz o controlo de qualidade da produção e desenvolve as fórmulas. Há frascos por todo o lado, até mesmo aqueles de farmácia antigos que hoje são apenas decorativos, assim como uma série de instrumentos de precisão.

No início, a pasta dos dentes era vendida em farmácia por ser “medicinal”. Só mais tarde passou a “dentífrica” e está à venda em mais lojas, mas não em grandes superfícies. Catarina Portas, da rede de lojas Vida Portuguesa, acha “extraordinário” como é que “uma das marcas [portuguesas] mais emblemáticas” se consegue manter e revitalizar no mercado. “Tiveram a inteligência de nunca se terem vendido”, realça. “Desde o primeiro momento que tenho a Couto à venda, e vendo imenso, tive de adquirir também o Restaurador Olex porque os clientes pediam”, recorda.

A empresária ficou impressionada quando, há 12 anos, viu à venda a pasta Couto com grande destaque em Londres e em Milão, enquanto em Portugal “as pessoas não davam grande valor porque tinham à disposição as marcas multinacionais”. Catarina Portas realça ainda o design, o facto de a embalagem nunca ter mudado e de a marca ter sempre apostado na publicidade, desde anúncios aos calendários.

O malabarista de Moçambique

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A Couto sempre apostou na publicidade, fosse através de anúncios na imprensa e televisão, fosse em calendários. Há slogans da marca que ainda ecoam na memória de muitos: "Na boca de toda a gente" DR

“A marca apostou num anúncio inesquecível com um malabarista”, recorda o especialista em marcas Carlos Coelho. Durante o anúncio, a preto e branco, o malabarista segura uma cadeira com os dentes, ouvindo-se uma voz de fundo: “Dentes fortes, gengivas sãs, boca saudável. Só com a pasta medicinal Couto.” O dono da empresa lembra-se bem do malabarista que convenceu a ir a Portugal, para trabalhar num espaço de diversão, em Lisboa, que então explorava com um sócio. Uma coisa levou à outra e quando menos se esperava lá estava o artista a participar num anúncio memorável. 

Por estes dias, a azáfama instalou-se na fábrica por causa da nova loja que está prevista inaugurar já na próxima sexta-feira, dia 29, na Rua de Cedofeita, no Porto, para comemorar o centenário. “As funcionárias vestem a camisola”, realça Cláudia França. E nem Alberto Gomes da Silva pára. Apesar dos seus 80 anos, é vê-lo a conduzir a empilhadora com as paletas, confirmar se as bisnagas estão em ordem, e se for preciso, ainda dá um jeitinho numa máquina que não esteja a funcionar. “É um verdadeiro engenhocas”, orgulha-se a mulher, que explica que o novo espaço “vai ter uma parte como se fosse farmácia antiga e uma parede a contar a história da Couto”.

“A pasta Couto é uma marca que dá colo, dá um certo saudosismo do passado e responde ao nosso desejo de memória. Vejo a Couto como uma marca bandeira de ideologia, um ícone que se reconhece ao longe, que representa um determinado tempo. A marca consegue-se manter sem perder a identidade”, conclui Carlos Coelho.

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A Couto prepara o lançamento de novos produtos para comemorar os 100 anos da marca Nelson Garrido