As ilhas estão lotadas numa cidade onde agora as marteladas são dadas em várias línguas

Há cada vez mais ilhas e bairros no Porto a serem transformados em alojamento local. No São João, estão de portas abertas aos turistas mas muitos preferem jantar e ver o fogo pela Ribeira.

Janela, casa, fachada
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No Bairro Herculano, os preparativos arrancaram no início da semana. Adriano Miranda
Janela, casa
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Na noite de São João, o Bairro Herculano recebe centenas de pessoas. Adriano Miranda

De 23 para 24 de Junho, as ruas do Porto enchem-se de pessoas de sardinha e martelo na mão para viver a noite mais longa do ano e, quem sabe, terminá-la na praia - neste sábado, os termómetros deverão chegar aos 32 graus mas a temperatura cai no domingo. Embora os festejos tenham crescido um pouco por toda a cidade, há ainda portuenses que não trocam as Fontainhas por nenhum outro lugar. Já a maior parte dos turistas prefere a música nos Aliados e fogo-de-artifício à beira-rio.

O Bairro Herculano, escondido atrás da Rua de Alexandre Herculano, fica a poucos metros das Fontainhas. Ali, há cada vez mais casas destinadas ao alojamento local mas são poucos os turistas que sabem o que é o São João e como este é ali vivido intensamente pelos portuenses.

Sérgio Silva vive no bairro há 60 anos, tem a mulher doente e este ano terá de ver o fogo pela televisão. Escolhe recordar o São João da sua juventude, quando era “tanta gente, que nem se podia andar na rua”. Jantava no bairro, mas não dispensava uma volta pelas Fontainhas. Pelas três da manhã ia para a praia e ali ficava até acordar com o sol a bater-lhe na cara. Hoje são cada vez menos as pessoas que visitam as Fontainhas nesta época festiva. Atribui a culpa à ponte do Infante, “que tirou movimento na zona”, e também ao “antigo presidente que levou a festa para a Boavista”.

Quanto aos turistas, Sérgio Silva admite que “não ligam muito” ao Bairro Herculano. Passam para ver as decorações de São João, ficam surpreendidos, mas “querem é ajuntamentos”, quase sempre na Ribeira, para ver de perto o fogo-de-artifício.

Carlos Martins passou o primeiro São João no Bairro Herculano há 45 anos. Só há três anos para cá é que passa na casa da filha, na Madalena. Os joelhos não lhe dão descanso. Não nega que, se pudesse, passaria ali. Todos os anos há bailarico, sardinha, bacalhau, caldo-verde e queimada, recorda.

O movimento é muito, mas poucos são os que vêm para ficar. Portugueses e turistas aproveitam o bairro sobretudo para cortar caminho e fugir às multidões. “É uma tradição passar entre a Rua de Alexandre Herculano e a Rua das Fontainhas. Passa sempre pessoal para se pirar ao povo”, conta o residente de 73 anos.

Ao contrário da maioria dos habitantes, que colocam as mesas nas ruas do bairro, Maria Filomena costuma comer dentro de casa (a mesa da sala é demasiado grande). Ainda é da altura do alho-porro e de passar a noite na praia. “Os anos vão passando e as pessoas começam a ficar mais cansadas. É uma pena. Íamos juntas por aqui fora pelas ruas de Alexandre Herculano, havia bailes, bailaricos e a gente saltava às fogueiras. Agora já não é assim”, lembra a moradora de 63 anos.

Para Maria Filomena, o aumento de casas destinadas ao alojamento local tem contribuído para a perda da identidade e tradições do bairro. “Esta casa é alugada dois dias só, depois lá vai a pessoa embora. Quer dizer, a gente está a dar bom dia à pessoa que está aí e passado um dia vão embora. Parece que está sempre tudo desalugado. Não dá para criar relações. E quanto mais pessoas antigas saem pior, mais a gente fica pobre, sem ninguém, só os velhos”, afirma.

A 500 metros dali, o cenário é diferente. Maria de Lurdes Castelo nasceu na Ilha do Senhor Doutor, na Rua de S. Victor, há 74 anos e garante que o São João é exactamente igual à altura em que “era miúda”. A diferença é que agora tem as portas abertas também aos turistas.

Ao jantar, cozinha “massa com os miúdos do anho” para a família. Mas ali o São João só começa depois da meia-noite. A partir dessa hora, acende-se o fogareiro, assam-se as sardinhas, o entrecosto, o chouriço e salsicha fresca e serve-se o caldo verde. Para terminar, “já ao amanhecer”, Maria de Lurdes bebe café quente e come um pão com manteiga, tal como “no tempo de catraia”, em que fazia “bicha em frente às padarias”.

Ali, os turistas, que entram para ver a cascata, acabam por ficar toda a noite. “De uns anos para os outros aparece mais gente, é brasileiros, é franceses, é de todas as línguas. Não percebem o que é, mas vêm aqui todos ter”, conta. O ano passado até houve quem lhe entrasse para dentro de casa, para “rapar a panela” do caldo-verde.

A 99 Coloured Socks, uma ilha uns passos acima, foi inteiramente convertida em alojamento local. Há cerca de um ano e meio, quando Filipe Arouca a descobriu, tinha doze casas “praticamente abandonadas”. Só numa delas vivia a Dona Isabel, actual governanta da propriedade. A moradora passou a viver numa ilha ali ao lado e Filipe Arouca decidiu recuperá-la para construir oito casas de alojamento local.

Neste caso, a comunidade local não foi esquecida. A senhora que faz as limpezas mora naquela rua, assim como o serralheiro, o pedreiro e o carpinteiro que ali trabalharam na reconstrução da ilha. O pão, distribuído todas as manhãs, é da padaria da Dona Maria José e a fruta vem da mercearia do Senhor Firmino, também da comunidade.

Neste São João, o primeiro desde que abriu em Agosto, a ilha tem lotação esgotada. “Não sabemos se vieram cá ao Porto necessariamente pelo São João ou se aproveitaram o fim-de-semana e vieram cá passar as suas férias. Acima de tudo, gostávamos, já que aqui estão, que se integrassem nas festas e que participassem de alguma forma”, afirma o proprietário. E assim foi. A ilha está decorada e o jardim, logo à noite, será palco de um “verdadeiro arraial de São João”. Os hóspedes foram recebidos com um manjerico e um martelo de São João em cada apartamento e logo podem envolver-se na noite mais alegre da cidade.

Texto editado por Ana Fernandes

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