O albergue moscovita de que ninguém gosta mas onde todos ficam

Santiago começou a conhecer a Rússia no México a ler Dostoiévski. O pai estava em Monterrey quando Portugal derrotou a Inglaterra no Mundial de 1986.

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Adeptos de todo o mundo têm chegado à Rússia para assistir ao Mundial de futebol Facundo Arrizabalaga/Reuters

Tem 15 anos e gosta de ler clássicos russos. Santiago emociona-se particularmente com Dostoiévski. Veio do México para Moscovo na sua primeira viagem ao estrangeiro. A ideia foi de Emiliano, o pai, que juntou dinheiro durante dois anos para trazer os dois filhos ao Mundial. Sabia no coração que a selecção iria qualificar-se. Estava nas bancadas do Estádio Tecnológico, na sua cidade natal de Monterrey, a 3 de Junho de 1986, quando Portugal derrotou a Inglaterra no arranque de um Campeonato do Mundo de má memória para a equipa nacional.

São 4h da manhã e esta família mexicana está acordada no corredor de entrada do Avita I. E o Avita I é um local de hospedagem muito particular. Surge como hotel quando se faz a reserva no Booking, com uma avaliação simpática e fotos prometedoras, mas lá chegados a realidade poderia basear-se mesmo num romance de Dostoiévski. É uma mistura de pensão rasca lisboeta, com pretensões a hostel. Não poderia estar mais afastado das imagens e dos comentários na Internet.

Demora cerca de hora e meia a chegar-se ali do aeroporto, de noite e sem trânsito. Mas é complicado mesmo para um taxista local dar com o sítio. É que Moscovo parece nunca acabar. A morada teclada no GPS dirige o veículo para uma cerca de alumínio alta e sem nenhuma indicação visível. Toca-se num botão de campainha e abre-se uma grande porta. Mas nada nos prepara para o que se vai seguir no interior deste prédio antigo de três andares, mesmo no centro de um jardim mal tratado.

Logo nas escadas, no exterior da entrada, um grupo de adeptos polacos bem bebidos esperava por quarto há duas horas. No acanhado hall da recepção o cenário era ainda mais dantesco. Estava apinhado de gente confusa que, insistentemente, tentava perceber se se enganara no sítio.

Para tornar tudo mais caótico, os funcionários não falavam inglês ou qualquer outro idioma que não o russo e perdiam eternidades a tentar traduzir através do Google Translater (uma ferramenta muito popular no país por estes dias) o que os hóspedes queriam dizer e saber. Isto perante uma babilónia linguística que se acotovelava para alcançar o balcão.

A família mexicana já estava instalada num quarto, mas o barulho trouxe-os à recepção que, à falta de televisão, parecia o melhor programa para uma noite de insónia. As pessoas continuavam a chegar. Marroquinos, tunisinos, sauditas, argentinos, peruanos, uruguaios, mais mexicanos, um casal francês, que deu imediatamente meia-volta aparentemente apavorado.

Nos corredores o cenário era idêntico e só reforçava as nacionalidades. Espanhóis, mais polacos, croatas e sérvios. Todos tentaram encontrar um local em conta para ficar em Moscovo durante o Mundial. A excepção era um médico libanês em viagem pela Rússia que também fora iludido pelo site do “hotel”. Alugara um quarto para descansar umas horas antes de viajar de comboio para São Petersburgo e deu consigo a partilhar um cubículo com um casal mexicano e um recém-chegado português.

A afluência de gente surpreendeu inclusivamente os funcionários, que descobriram no Mundial russo uma mina de ouro. Têm preços atractivos no esgotado cenário hoteleiro moscovita e mesmo a abarrotar pelas costuras continuavam a disponibilizar quartos no Booking. Não recusavam ninguém. É uma oportunidade única e a maioria das pessoas não tem para onde ir com o dia já a nascer. O sol começa a aparecer perto das 4h na capital russa nesta altura do ano.

Ou fica ou vai embora

Tiveram uma ideia brilhante e transformaram os quartos individuais em camaratas, apertadas e sem condições de higiene, para não falar de privacidade. Um quarto para uma pessoa? Nem pensar. E quem não se conformava, insistindo em exibir a reserva? Encolhiam os ombros e apontavam com a mão a porta da rua. Também cobram para quem optar por dormir nos carros dentro da propriedade.

Mas depois de se estar ali algum tempo a conhecer este mundo de gente e a ouvir as suas histórias o local tornava-se irresistível. Uma experiência única. O Mundial é isto. Une pessoas de todas as culturas, credos e condições sociais num espírito de alegria, união, amizade, cumplicidade e entreajuda.

Santiago estava radiante, com os olhos castanhos a brilhar atrás dos óculos graduados e um sorriso aberto na cara latina. Falava sobre a Rússia com um à-vontade como se já aqui tivesse estado anteriormente. O pai, que tem uma pequena “finca” nos arredores de Monterrey, escutava-o com indisfarçado orgulho.

Contou sobre as “noites brancas” de São Petersburgo - um fenómeno que faz os dias entrarem pela noite fora nos meses de Verão -, para onde vão depois, antes de regressarem ao México ou cometerem a loucura de ficar mais tempo. Tudo depende da sua selecção que, para já, os faz sonhar alto.

Foi com Dostoiévski que aprendeu muito sobre a Rússia, a sua história e cultura, mas enumera excitado outros escritores que também leu: Tolstoi, Gorki, Nabokov. Escuta todas as conversas avidamente. Participa sempre que pode. Quer saber de outras experiências e mundos bem distantes da sua quinta no México. O pai chama-o, mas não quer ir dormir. Nem pensar.

Terá tempo quando regressar ao México, seja lá quando isso for.

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