O Inferno são os outros

A Relação soube ouvir os cascos da Noémia e repor um pouco de justiça neste deprimente drama urbano.

Se é certo que o direito à preguiça não é reconhecido constitucionalmente, já o direito ao repouso, ao sossego e ao sono são, nas palavras do Supremo Tribunal de Justiça, “uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais”.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Se é certo que o direito à preguiça não é reconhecido constitucionalmente, já o direito ao repouso, ao sossego e ao sono são, nas palavras do Supremo Tribunal de Justiça, “uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais”.

Mário e Maria, residentes num 8.º andar direito, em Lisboa, meteram em tribunal a Noémia, residente no 9.º andar direito do mesmo prédio, pedindo que fosse condenada a cessar imediatamente os ruídos incomodativos que fazia, bem como o seu animal de companhia, e a indemnizá-los na quantia de 15 mil euros. Noémia contestou dizendo que o barulho que fazia entre as 7h e as 8h da manhã se cingia ao normal e estritamente necessário a levantar-se, tomar banho, vestir-se e sair de casa por forma a ir trabalhar, não fazendo qualquer barulho de forma propositada ou com intenção de prejudicar os seus vizinhos. E, afirmava, o seu cão, de raça pequena e já adulto, também não fazia barulhos desadequados.

No tribunal de 1.ª instância não só a Noémia foi absolvida como o Mário foi condenado a pagar-lhe 6250 euros pelos danos morais que lhe causara porque, num apontamento que escrevera para a Polícia Municipal, ao referir-se ao barulho causado pela Noémia no andar por cima da sua habitação, usara a expressão “cascos”, o que o tribunal considerou que era o mesmo que chamar “cabra” à Noémia, pois as cabras é que têm cascos!

Recorreu o Mário para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no passado dia 5 de Março, deu uma grande volta ao assunto: desde logo, afastou a condenação do Mário já que, naquelas circunstâncias, o Mário estava a registar os ruídos que eram produzidos pela Noémia e a palavra “cascos” traduzia o ruído que ouvia quando a Noémia andava de um lado para o outro, na sua residência, fazendo uso de calçado ruidoso sobre pavimento de tijoleira. Ou seja, era uma forma de descrever o ruído sentido, não se podendo concluir que estava a chamar-lhe cabra.

Mas os juízes desembargadores, Farinha Alves, Tibério Silva e Maria José Mouro, foram mais longe. Consideraram provado que, desde finais do ano de 2012 e ao longo de 2013 e 2014, quase diariamente, a Noémia, por volta das 7h da manhã, calçava uns sapatos que sabia serem ruidosos, e que ecoavam no chão de tijoleira, que entretanto colocara no apartamento, enquanto fazia rotina matinal, até cerca das 8h. E, por vezes, antes de se ausentar de casa, descalçava esses sapatos ruidosos, saindo com sapatos de sola mais silenciosa. Para além disso, batia as portas dos roupeiros com violência e, aos fins-de-semana, começava a fazer limpezas a partir das 7h, fazendo uso do aspirador antes das 8h. Quanto ao cão, ficou provado que o mesmo, quando ainda era pequeno, ladrava e chorava intensamente no período em que a Noémia estava ausente de casa, o que sucedeu durante o período de um ano e meio e, a partir daí, só ladrava quando pressentia a presença de estranhos no patamar.

Ora, todos os ruídos referidos eram muito perturbadores do descanso da Maria e do Mário, que tinham, sem sucesso, apresentado ao longo dos anos queixas junto de diversas entidades: o IASFA, a APAV, o Julgado de Paz, a PSP, a câmara municipal, a Consulmed, a Polícia Municipal e o provedor de Justiça. Acrescente-se que Maria era doente do foro oncológico com (desgastantes) tratamentos de quimioterapia e radioterapia, o que a Noémia bem sabia.

Para a Relação, a Noémia, de forma consciente e voluntária, sem causa justificativa, permitia-se produzir ruídos, inteiramente evitáveis, ao menos naquela hora matinal, sabendo que com isso estava a perturbar o descanso da Maria e do Mário. Ora, “os ruídos desnecessários, que causem algum prejuízo aos vizinhos, são sempre ilícitos, traduzindo uso anormal do prédio, ou redundando em abuso do direito”, pelo que condenou a Noémia a cessar imediatamente os ruídos incomodativos por si produzidos e, ainda, a pagar ao Mário, a título de indemnização, o que este pedira: a quantia de 7500 euros.

A Relação soube ouvir os cascos da Noémia e repor um pouco de justiça neste deprimente drama urbano.