Misoginia em conferência no Estoril motiva carta aberta de repúdio: "É o #MeToo do jornalismo"

“Eu sou o Charlie e elas os meus anjos”, disse João Palmeiro, presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, durante uma conferência da área no Estoril, no início de Junho. Acusando-o de machismo, a indústria responde-lhe: "O tempo acabou, de uma vez por todas”.

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Cartaz do movimento #MeToo Issei Kato

O presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, João Palmeiro, protagonizou um dos momentos mais controversos do jantar de gala do World News Media Congress, no Estoril, no início de Junho. Quando apresentou a sua equipa de trabalho, composta exclusivamente por mulheres, Palmeiro não hesitou em chamar-lhes “anjos”, e pediu-lhes beijos, o que as deixou desconfortáveis. O episódio “infeliz”, como o próprio o classificou, foi condenado nas redes sociais e na imprensa internacional e motivou uma carta aberta de repúdio, assinada por várias profissionais dos media, publicada na passada terça-feira.

“Eu sou o Charlie e elas os meus anjos”, disse João Palmeiro, na apresentação da sua “dream team” (como a classificou) de organização do evento, que se realizou entre 6 e 8 de Junho. Salientando várias vezes que se tratava de uma equipa composta exclusivamente por mulheres, o presidente da Associação Portuguesa de Imprensa acrescentou: “Eu não sei se estou preparado para as partilhar com vocês”. O momento foi captado em vídeo e partilhado nas redes sociais, com comentários onde apontavam o dedo a Palmeiro pela misoginia.

“Vou dar um beijo a Christin em nome de todos vocês”, disse, referindo-se a Christin Herger, da World Association of Newspapers, que se mostrou um pouco desconfortável com a situação. “Ela está envergonhada”, comentou, mas não se deteve. Aproximando-se mais de Herger, voltou a pedir um beijo: “Dê-me um beijinho, por favor”.

Como Christin não correspondeu, virou-se para Maria Belém, uma das portuguesas na equipa. “É uma mulher portuguesa, por isso, não é tão envergonhada”.

O momento caiu mal entre os representantes internacionais, que se mostraram imediatamente indignados. João Palmeiro pediu desculpa no último dia do congresso, defendendo-se – é parte da “cultura portuguesa”, justificou. “Suspeito que não estejam cientes das minhas actividades de defesa de causas como a igualdade de género, raça ou orientação sexual, que mostram muito claramente que o que se passou no jantar foi, no que diz respeito às minhas acções, um momento infeliz de menos atenção por parte de uma pessoa e não uma afirmação de uma ideologia ou de comportamento desrespeitoso de uma organização ou sector de actividade”, acrescentou, contactado pelo Niemanlab, um dos sites onde foi publicada a carta aberta de repúdio.

“É o momento #MeToo das conferências de Jornalismo?”

No Twitter, as reacções ao discurso não se fizeram esperar. Yusuf Omar, jornalista presente na conferência, publicou o vídeo do jantar na rede social. A investigadora da área do jornalismo e media da Universidade de Oxford, Julie Posetti, citou-o e questionou: “É o momento #MeToo das conferências de Jornalismo?”

Agora, um conjunto de profissionais dos media responde-lhe. Numa carta aberta, publicada em simultâneo no Niemanlab, The Quint, European Journalism Observatory, ICFJ, Chicas Poderosas, WikiTribune e NewsMavens, pede-se o fim do machismo no sector dos media. “Quando os utilizadores das redes sociais denunciaram a misoginia no Estoril, tornou-se num momento #MeToo para eventos de jornalismo”, lê-se na carta.

Assinada por vários nomes dos media, incluindo as portuguesas Catarina Carvalho, directora executiva do Diário de Notícias, e Mariana Santos, fundadora da plataforma ChicasPoderosas, acrescenta-se: “Já chega de ceder aos egos de homens influentes que resistem à mudança, na esperança de que a nossa liderança gentil os encoraje a juntarem-se a nós, nos meandros da igualdade de género no negócio mediático. O tempo acabou, de uma vez por todas”.

O episódio que envolve João Palmeiro é relatado ao pormenor, incluindo os pedidos de desculpa da WAN-IFRA, que organizou a conferência, e os comentários de Maria Belém, uma das mulheres que subiram ao palco e que acabou por beijar o presidente da Associação Portuguesa de Imprensa. “Não somos anjos e não trabalhamos para Charlie. Somos profissionais a trabalhar pela liberdade de imprensa e por um ecossistema mediático mais saudável”, escreveu, horas mais tarde, numa mensagem na aplicação da conferência.

Recordando outro momento de desconforto (quando um humorista fez uma piada onde comparava as notícias falsas às mamas, concluindo que “quanto mais falsas, melhor”), os remetentes da carta lançam um ultimato: “É tempo de deixar de falar da necessidade de igualdade e de começar a reformar a indústria de forma activa”.

“Ironicamente, um novo manual da WAN-IFRA para combater o assédio sexual nos media foi lançado durante a conferência”, lê-se, seguindo-se vários conselhos para contrariar a misoginia nas redacções.

Num evento que “devia ser o pináculo das boas práticas, moldando o caminho da progressão da indústria” os painéis acabaram, no entender destes profissionais, por perpetuar estereótipos de género. Apesar de 48% dos oradores serem mulheres, “o World News Congress de 2018 foi um estudo de contrastes, um indicador de como a indústria jornalística trata as mulheres: gestos de respeito simbólicos (e por vezes substanciais) intercalados com discriminação sexual e assédio real e às vezes chocante”, consideram.

Admitindo que muitos sites já se preocupam com a diversidade e representatividade nas suas redacções e nos conteúdos que publicam, as vozes detrás desta carta aberta diagnosticam alguns problemas que perduram: “As mulheres nos media continuam sub-representadas nas manchetes, nas editorias e nas direcções. E recebem menos do que os homens”.

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