O pequeno “conflito dos historiadores”

Temos assistido no espaço público a uma discussão conflituosa sobre uma matéria histórica relativa ao passado colonial dos portugueses que, embora de modo ligeiro e abreviado, faz lembrar o “conflito dos historiadores” (o Historikerstreit, como ficou conhecido), desencadeado na Alemanha, em 1986, pelas teses do historiador Ernst Nolte sobre o nazismo, com uma ampla repercussão na sociedade civil. Só que, por cá, o conflito é não tanto entre os historiadores ou, pelo menos na sua expressão pública, não acontece exclusivamente nos territórios disciplinares da historiografia, mas irradiou largamente para o seu exterior. Às tantas, é mais um conflito entre historiadores e os detentores da chamada “opinião”, com todas as suas ramificações. Não partirei do princípio de que a opinião deve ser desclassificada ante a “autoridade” da ciência histórica, a qual, nesta matéria, como quase sempre, avança num campo de batalha – uma batalha política e ideológica a que a escrita da história jamais se subtrai. Mas, na verdade, é possível reconhecer em muita desta opinião publicada uma concepção da história tão ingénua que faz rir, assim como uma amálgama absurda de alvos a abater (um desses alvos é o “politicamente correcto”, que está a milhas de tudo o que está em jogo neste debate, mas que se tornou uma obsessão dos sumos sacerdotes, correctores da correcção). Essa concepção da história é aquela que não admite que a história é construída por um discurso crítico sobre o passado. Na verdade, quem assim concebe a história acha que a sua concepção reflecte a verdade porque foi como verdade inquestionável que ela lhe foi transmitida, enquanto a dos outros é pura ideologia. Esta concepção da história é aquela que está por trás de uma expressão muito escutada: “o acontecimento X fez história” e “o indivíduo Y fez história”. Assim entendida, a história é sempre uma entidade transcendente, que glorifica, condena, ou absolve, uma espécie de Juízo Final.

Sobre a matéria propriamente dita que está na base deste recente conflito não pronunciarei palavra por falta de competência mínima. Mas no que diz respeito a um conhecimento meta-histórico (devemos recordar a lição de Kant: a historiografia privada de reflexão meta-histórica é um conhecimentos cego; a reflexão meta-histórica privada de conhecimento histórico é vazia) não assistiríamos hoje a uma discussão deste tipo, nem muito provavelmente teria havido pretexto para ela se não tivesse surgido nas últimas décadas uma “obsessão memorial” (como lhe chamou um historiador chamado Enzo Traverso), uma entrada em cena da memória como ferramenta analítica e modo de representação colectiva do passado. A contaminação da historiografia pela memória (depois de as ciências sociais, nas suas elaborações mais ambiciosas, terem tentado separá-las) tornou-se um modelo e até um imperativo quando, a propósito do nazismo, se começou a falar de um “dever de memória”. E esse modo de representação do passado pela memória, tornado imperativo em relação a um acontecimento extremo que é um “passado que não passa” (e aqui entra em acção um outro conceito que a historiografia adoptou: o conceito de trauma) tornou-se uma categoria muito comum no discurso da história: não é, aliás, por acaso que em Dezembro de 2007 as Cortes espanholas (também elas...) votaram uma lei de reconhecimento e reparação simbólica das vítimas dos crimes perpetrados pela ditadura franquista que se chamou “lei de memória histórica”. Em tempos mais recuados, seria um nome paradoxal ou sem sentido, formado por dois conceitos que eram considerados antitéticos. Actualmente, não há nenhuma força capaz de o anular.

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