Um Verão na Gulbenkian: migrações, memória e os azulejos Bordallo do túmulo do sultão

Praneet Soi, Aimée Zito Lema e Joaquim Sapinho são os convidados do Museu Gulbenkian para os próximos meses. Exploram a própria colecção da fundação, mas também Lisboa, Índia ou o 25 de Abril.

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Praneet Soi passou um ano em Lisboa, entre a Gulbenkian e a Mouraria (com um desvio até às Caldas da Rainha) DANIEL ROCHA

Este Verão, a Gulbenkian faz-se à estrada sem sair do mesmo sítio. A viagem começa já esta sexta-feira numa sala escura, com a primeira das três novas exposições da fundação. A directora do Museu Gulbenkian, Penelope Curtis, convidou o artista indiano Praneet Soi para uma residência em Lisboa e, um ano depois, Soi “tornou-se quase parte da mobília”. Este é um trajecto entre Caxemira, Lisboa e as Caldas da Rainha dos azulejos Bordallo Pinheiro, mas também uma ida à Colecção Gulbenkian.

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Este Verão, a Gulbenkian faz-se à estrada sem sair do mesmo sítio. A viagem começa já esta sexta-feira numa sala escura, com a primeira das três novas exposições da fundação. A directora do Museu Gulbenkian, Penelope Curtis, convidou o artista indiano Praneet Soi para uma residência em Lisboa e, um ano depois, Soi “tornou-se quase parte da mobília”. Este é um trajecto entre Caxemira, Lisboa e as Caldas da Rainha dos azulejos Bordallo Pinheiro, mas também uma ida à Colecção Gulbenkian.

No cruzamento entre a Rua do Benformoso, na Mouraria lisboeta, e a arquitectura da cidade indiana de Srinagar: aí se encontra o trabalho de Praneet Soi. Ou no rosto do operário da Bordallo que o artista quis sobrepor aos azulejos reproduzidos pela fábrica portuguesa a partir do padrão daqueles que revestem o túmulo de Miran Zain, a mãe do oitavo sultão de Caxemira.

Curtis conheceu o trabalho de Praneet Soi na Frieze Art Fair de Londres em 2015 e o próprio artista em 2016. Convidou-o a vir trabalhar os caminhos cruzados entre Lisboa, a colecção do fundador, Calouste Gulbenkian, e o interesse do artista por azulejos, essa fonte de repetições e sequências. “Uma enorme quantidade de peças da Colecção Gulbenkian tem como base os padrões, e queria encontrar um artista contemporâneo interessado nos padrões, na artesania e em como usar tudo isso de uma forma contemporânea”, explica a directora na visita que apresentou à imprensa, esta quinta-feira, a exposição que até 1 de Outubro ocupará o piso inferior do museu.

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Nas instalações de Praneet Soi, revestidas a azulejos, projectam-se imagens que o artista captou na fábrica da Bordallo Pinheiro DANIEL ROCHA

Tendo por base as artes manuais, as três instalações com vídeo que compõem Praneet Soi. Terceira Fábrica. De Caxemira a Lisboa, via Caldas “pensam sobre elas e o que elas significam”, acrescenta Penelope Curtis, revelando que o artista, que tem a viagem e a descoberta como chamamento e ferramenta, trabalhou com quase todos os curadores da fundação, explorou os seus recantos, observou. Ao longo de um ano, descobriu Lisboa, ouviu as línguas do seu país na Mouraria. E assim chegou às três instalações que dominam a sala: peças arquitectónicas revestidas a azulejos não-vidrados onde se projectam imagens que o próprio captou na fábrica Bordallo ou no rendilhado da Mouraria.

“Como artistas, muitas vezes temos uma prática solitária, no estúdio, especialmente um artista como eu, que começou como pintor. Movimentos destes ajudam-me a entrar em contacto com o mundo e com situações que de outra forma não conheceria – estar numa fábrica é ver relações humanas, como as pessoas trabalham com máquinas, como isso afecta os produtos postos depois no mundo”, diz ao PÚBLICO na penumbra propositada da sua sala. As “três estruturas quase funcionam como cenários e ao mesmo tempo são ecrãs”, atenta o curador João Carvalho Dias.

Todas contêm elementos que recolheu da Colecção Gulbenkian: um tapete Kum Tapi (do final do século XIX, início do século XX) e um jarro de jade (século XVI) que pertenceu ao monarca que governou Caxemira. Foi este que “começou a fazer a conversa”, a mistura, entre os pólos da mostra, diz Carvalho Dias aos jornalistas. Até o edifício da Fundação Champalimaud, projectado por Charles Correa (1930-2015), de origem indiana – e que Soi procurou como alternativa às imagens mais comuns da relação Portugal-Índia corporizadas pela arquitectura religiosa em Goa –, é citado nas projecções.

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Praneet Soi queria verdadeiramente que o espaço que criou no piso inferior da Fundação Calouste Gulbenkian "se tornasse um ambiente" DANIEL ROCHA

Na construção do espaço e das peças, que num dos casos incluem texto muito pessoal, em registo de diário, o artista “estava muito ciente do espectador e queria muito que ele não ficasse barricado pelo [uso do] jargão técnico, mas seduzido pelas imagens”, para que “o espaço se tornasse um ambiente”. Entre três peças desenham-se muitas rotas no escuro. “Espero que abra um espaço mental para que as pessoas pensem noutras coisas”, diz Praneet Soi.

O museu como fábrica

João Carvalho Dias chama a atenção para o facto de o artesão ser uma preocupação central para o artista convidado da Gulbenkian. “Os artesãos são personagens muitas vezes anónimas cujo trabalho é migrante – e esse é um dos aspectos presentes no trabalho, [que evoca] não só a forma como os objectos são construídos e pensados, mas também a forma como as próprias pessoas se deslocam e transportam em si conhecimento, técnicas, conceitos e experiências”, completa o curador.

Um dos pontos de partida da obra de Praneet Soi é Caxemira, onde passou muito tempo, observando, criando. “O meu principal motivo para ir a Caxemira foi o interesse no facto de ser uma região fronteiriça problemática, com o movimento separatista. Comecei a ir lá curioso sobre as fronteiras do meu país. Sou de Calcutá, uma cidade indiana muito mainstream, e nunca tinha ido tão a norte. Saí da minha zona de conforto, estava numa região onde tinha de renegociar, recalibrar. Lá, a Índia é muito longe”, recorda, explicando que a população local se identifica mais com os países da Ásia Central.

O que dá isto a um artista, onde o leva? “Estes movimentos dão-nos uma compreensão diferente da vida. Aquela parte do mundo interessa-me pela política, mas também pela sua tradição de migrações. Hoje estamos a voltar às fronteiras, toda a gente quer a sua, mas se olharmos para a História veremos que as pessoas sempre se moveram e atravessaram fronteiras e cruzaram referências; foi uma polinização cruzada que criou a cultura.”

David Maranha compôs a camada sonora que envolve a sala, com, por exemplo, sons da fábrica da Bordallo. É uma espécie de súmula da ideia titular da exposição – chama-se Terceira Fábrica porque, além das Caldas e das estruturas que Praneet Soi tão bem conhece em Caxemira, também a galeria pode ser pensada "como um espaço de produção”, diz aos jornalistas. Para ele, “o museu funciona também como uma fábrica, um sítio onde se geram ideias, fabricam coisas; não é um lugar inerte”, resume João Carvalho Dias.

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Aimée Zito Lema trabalhou com o Grupo de Teatro do Oprimido os temas da memória e da construção da História DANIEL ROCHA

A construção da memória

Da Terceira Fábrica ruma-se à morada da Colecção Moderna da Gulbenkian para ir ao encontro de 13 Shots, de Aimée Zito Lema, que terá a sua inauguração a 29 de Junho. A artista de origem argentina, mas nascida na Holanda, filha de um refugiado político, trabalhou o tema da memória e da construção da História e das histórias numa residência em Lisboa que a levou a colaborar com o Grupo do Teatro do Oprimido e a explorar os arquivos do ACARTE, o antigo Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Gulbenkian. Pelo meio ficou a Sala Polivalente, o espaço onde trabalhou com o grupo, e todos os espectáculos que lá se realizaram no passado. Nas paredes estão fotografias desses processos de passado e presente que ali foram tratados pelos membros do colectivo. “As suas vozes falam da história do 25 de Abril, contando o que sabem, como são influenciados por ela”, explicou a artista aos jornalistas, explicitando um processo que quis iluminar “como sabemos as coisas e nos lembramos delas, especialmente na história transgeracional”.

Na origem desta mostra que preenche uma galeria com projecções vídeo, imagens, charriots, luzes de biblioteca e fotografia, está um projecto internacional reunindo universidades e instituições museográficas de arte contemporânea, coordenado pela Universidade Católica de Lisboa e financiado em 1,8 milhões de euros pelo programa Europa Criativa, que explora os temas do conflito e convivialidade. Ana Cachola, que com Luísa Santos e Daniela Agostinho é curadora da mostra e estendeu o convite a Zito Lema, analisa como 13 Shots “trabalha a memória diferenciada do 25 de Abril” e “a investigação da memória do ACARTE, o espaço de performance e a performance da própria revolução, a performatividade da história e performatividade do teatro e da dança”.  

Completando o programa de Verão da fundação, o realizador Joaquim Sapinho inaugura a 20 de Julho uma exposição com peças que ele próprio escolheu a partir da Colecção do Fundador, e que espalhará ao longo de um percurso pelo museu organizado segundo vários temas.