Um filho de cada homem que amar

A alemã Angelika Schrobsdorff escreveu um romance sobre uma vida extravagante, intensa e inconformada – a da sua mãe. Um livro que é uma carta de amor e um retrato de um tempo devastador.

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Sören Stache

Chegados ao fim da leitura das quase 600 páginas de Tu não és como as outras mães, podemos interrogar-nos se, de facto, se trata de um romance ou de uma biografia de Else Kirschner, mãe da autora, a escritora alemã Angelika Schrobsdorff (1927-2016). A resposta acaba por ser desnecessária, porque o que emerge dessa leitura é que o livro é uma longuíssima carta de amor (com alguns factos e diálogos ficcionados) à mãe — mulher que ao mesmo tempo personifica uma viagem entre o paraíso e o inferno, retratando um tempo devastador para os judeus.

A mãe, Else, era oriunda de uma família judia da alta burguesia alemã. Criada com todos os preceitos culturais e morais que a religião judaica e a sociedade lhe impunham, Else vivia inconformada e com o sonho de viver no “grande círculo cristão”, mais livre do que aquele em que se movia. Chegada a altura de casar, e com a Primeira Guerra Mundial a decorrer, a família tratou de lhe arranjar um casamento, já que, segundo as normas, a mulher não podia “ser outra coisa senão fêmea e mãe”. Apesar de Else já estar apaixonada por um poeta, os preparativos continuaram; mas ela acabou, algum tempo depois, por deixar a família e casar-se com o amante. Foi o início de um atribulado percurso afectivo — que não se cingiu a geometrias amorosas comuns. Era a década de 1920 e Berlim “já não era a residência imperial de rígida etiqueta, costumes púdicos e disciplina prussiana; era o coração, a eleita, o património dos seus habitantes, que finalmente, libertos das restrições, lhe davam forma ao seu gosto e lhe imprimiam a sua identidade, o seu carácter”. Else Kirschner tinha saído do molde e vivia fora do conservador círculo judaico. Frequentava festas e fazia da sua vida, nesses anos, uma festa. Entretanto, tinha sido mãe. Tempo depois, na sua casa de família, vivia também o seu amante, bem como a amante do marido, a baronesa Eugenie von Liebig — que décadas passadas ainda vivia com três homens (“todos eles a amavam, ela já não amava nenhum deles”). Else engravidou pela segunda vez; a notícia de que o pai da criança seria o amante quebrou a harmonia naquele quarteto. Mas ao mesmo tempo parecia estar a dar cumprimento a um seu desejo de jovem rapariga: ter um filho de cada homem que amasse. E assim o fez.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é o modo como a autora, com uma voz narrativa forte, tenta ir reconstituindo a forma de pensar da mãe, nas suas contradições e impetuosidades, ao mesmo tempo que a enquadra num contexto histórico e social, começo da década 1920. “Foi a grande época das mulheres, que, subitamente libertas das amarras, podiam participar no mundo dos homens como indivíduos autónomos e exprimir os seus sentimentos, pensamentos, expectativas e necessidades, antes reprimidas ou recalcadas. Livraram-se dos aventais e dos corpetes, da sua feminilidade adocicada, da sua submissão assexuada.”

Do paraíso ao inferno

A escritora Angelika Schrobsdorff foi casada com o realizador Claude Lanzmann (amante de Simone de Beauvoir, quando ambos viviam em Paris), autor de um documentário incontornável na tentativa, sempre vã, de perceber o Holocausto, Shoah. De certa forma, este livro é também uma parte desse relato que o tempo vem completando; para além de ser mais uma tentativa (também sempre vã) de aclarar as razões da inconsciência colectiva alemã nos primeiros anos do nazismo — a avó da autora morreu no campo de concentração de Treblinka, e disso nos dá ela conta na última parte do livro.

Os amantes de Else vão-se sucedendo — Angelika é a terceira filha, nascida em 1927 —, numa altura em que o nazismo começa a ganhar força. Else via-se antes de mais como alemã, a sua ascensão judaica estava em segundo plano. Mas a descida ao inferno avizinhava-se. A vida em Berlim ainda mantinha o glamour, mas já se sentia que algo pairava sobre os judeus. E assim continuou até ao dia em que a Alemanha pareceu entrar em processo autofágico e atrair tudo para o seu centro.

Entretanto, Else e os filhos conseguem exilar-se na Bulgária. “A Bulgária era a Gata Borralheira da Europa”, escreve Angelika Schrobsdorff, ao mesmo tempo que dá conta das diferenças culturais, desde a limpeza das ruas à organização civil. A partida para a Bulgária foi a derrocada do sonho de uma vida. Que se agravou ainda mais quando o governo búlgaro legislou contra os judeus (com leis semelhantes às alemãs): exigindo o uso da estrela de David nas roupas, e decretando o confisco de bens e de contas bancárias. Mas, pouco tempo antes de ter deixado Berlim, Else tinha-se convertido — “sabe-se lá por que razões”, escreverá a filha — ao credo ortodoxo russo, e essa seria a sua salvação, pois “a igreja era forte” e as leis “não se lhe podiam aplicar”.

Este livro não é, entre outras leituras possíveis, o simples relato de uma vida vivida muitas vezes perto do limite, qualquer que ele fosse — mas é um relato que se projecta e que serve ao mesmo tempo de uma espécie de exercício introspectivo da autora, ao rever nele também a sua vida na relação com aquela mãe que não era igual às outras. A narradora critica-se a si mesma e conta os momentos em que foi injusta com a mãe e em que a julgou, mas não se esquecendo de lhe apontar também as falhas.

Não sendo um livro literariamente impressionante — longe disso —, é uma narrativa quase linear que vai dando eco a uma voz segura que, sem enfeites ou ademanes, consegue prender o leitor e levá-lo a diferentes tempos em Berlim e em Sófia, com a acção a decorrer entre 1893 e 1949.

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