Oneohtrix Point Never tem o coração desfeito

Age Of: dificílimo de engolir, incrivelmente necessário, impecavelmente acabado. Um clássico contemporâneo.

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Com os anos Daniel Lopatin conseguiu montes de encomendas de peças, está integrado no sistema mais vanguardista de bandas sonoras na Hollywood pós-Netflix, e, mais importante, sabe muito e está atento ao que a música de todos os quadrantes tem para lhe oferecer Jefferson Lead

Gentrificação, isolamento, burocracia (emocional e não só), caga-regrismo, neofascismo politicamente correcto, legislação para criar liberdades que visam a ausência do confronto com os problemas reais. Obsessão pelas narrativas mediáticas. Obsessão por uma história que — como quase todas — ainda não nasceu e morreu para poder ser contada de uma forma truncada. A obsessão de arrumar tudo dentro de uma caixa. A egomania discursiva e identitária por detrás disso tudo; a quantidade de desculpas que se arranjam para o não-envolvimento com o presente e o poder.

Daniel Lopatin (o homem por detrás de Oneohtrix Point Never) deu o título Babylon à segunda faixa deste seu novo Age Of, pela icónica Warp Records (de Aphex Twin, dos Autechtre; da série Cargaa da Príncipe; de tanta coisa importante na música electrónica nos últimos vinte e tal anos). Será eventualmente a palavra-chave do disco. Que o Danny não tem a solução final para os problemas mais escuros é por de mais aparente; até porque aqui optou por uma obra onde decidiu fazer uma arquitectura de objectos musicais pós-pós-modernos, onde toda a sua fé, coração, cinismo, descrença, esperança viral, neurastenice viral, confusão geral, angústia teológica pudesse ter algum tipo de unidade. É um trabalho cristalino de um enorme, e gloriosamente orquestrado, desamparo e desespero. Ele não está bem de alma; é gritante. Reflecte a dificuldade em estar aqui e agora nas grandes metrópoles do Ocidente, para quem quer fazer sentido e ser honesto (essa emoção está por todo o lado aqui). Nada de novo, só as formas e as técnicas. E nesse capítulo, como sempre no seu percurso artístico, Daniel é realmente brilhante: organiza de formas novas as coisas do mundo para podermos olhar para elas com uma outra claridade. Tem-lo feito não só sozinho, como com vários colaboradores, mexendo em imagem (digital, analógica), escultura 3D, criando heterónimos, procurando aliados, explorando. À Kubrick, tenta cruzar todos os meios, acabando por se aproximar de formas como que totais do objecto artístico, sempre com detalhe e invenção.

O disco é um coche quântico. Abre com cravos. Tem Anohni em várias faixas na harmonização e em duetos com um Lopatin que surge sempre robotizado (versão updateada de um auto-tune líquido, calibradíssimo); o janado BDSM futurista do Prurient/Vatican Shadow noutros contributos pós-modernisticamente vocalizados; James Blake enquanto co-produtor fantasmático; o óptimo percussionista/baterista Eli Keszler em quatro temas, no seguimento das suas colaborações mais recentes com Rashad Becker (talvez o masterizador de discos mais influente, bem marketizado e icónico deste século). Parece estar aqui toda a inteligência e informação, mais ou menos artificial, da Internet, e uma tentativa de a sincretizar junto com todos os seus interstícios, dentro de uma esfera esteticamente intimista (sempre em aglutinação) do universo Oneohtrix Point Never. Um mundo onde já não se consegue destrinçar das angústias entre facto e ficção, realidade e fabricação. Aqui e ali, contudo, dá-nos umas vinhetas mais contemplativas e plácidas, instrumentais, para nos ajudar a chegar até ao fim deste trilho, que à medida que o disco vai avançando fica um pouco mais leve e luminoso, especialmente no alívio ascético do derradeiro “last known image of a song”. Mas a estrada até lá é dilacerante.

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Jefferson Lead

Age Of é sincero ao ponto de incorporar em honestidade o próprio cinismo, numa época em que falar em “pós-verdade” não é notícia de hoje. Há uns tempos deu uma entrevista (na verdade, uma conversation piece) mais ou menos performática com um tipo do Twitter que faz carreira profissional de ser neura a um grau avançado (mesmo — o tipo tem centenas de milhares de seguidores). Pareceu ser uma espécie de safe space/zona de conforto (o que quer que seja que essas coisas significam hoje dentro de tanta cegada pseudofuncionalista misturada com a libertação das pessoas), onde eles aparentemente surgiam confortáveis num discurso prozaciano, xanaxiano, e o que mais se toma agora para não se ser “bipolar”. Ambos pareciam em harmonia nesta tipologia invulgar de entrevista, meio que a fazer um processo aparentemente inverso de competição macho-alfa de quem é o mais inconstante, irregular, deprimido, ausente. Estranha a sensação de o ler assim, também porque tão desenvolto nesse tipo de discurso. Pareceu tão desolado, e olhando para as letras aqui não ficam grandes dúvidas disso mesmo. Mais do que nunca na sua discografia, as faixas do álbum são canções, lamentos pop sem precedentes na sua configuração de elementos. As imagens nas letras: neve negra; buracos sem fim; visões de fragmentação de personalidade para sobrevivência operática; absoluta ausência de horizonte, ponto de fuga; pânico, angústia; uma solidão grotesca. Ian Curtis ficaria impressionado. Dói dizê-lo.

No meio disto e ao longo dos anos Lopatin virou ícone; uma espécie de Trent Reznor para nerds mais ou menos visionários que cresceram neste século a prestar atenção à música electrónica abstracta. É duro perceber até que ponto um gajo tão sapiente, culto, inteligente, astuto e com sucesso como ele está a tentar processar e somatizar o quão mal está a passar. Vindo das profundezas do underground nova-iorquino ligado a explorações de texturas em formas abertas e improvisadas, tem cruzado o seu percurso com o de gente tão diversa como Iggy Pop, Sofia Coppola, FKA Twigs ou David Byrne, à medida que o seu trabalho foi ficando mais melódico, imediato, e ao mesmo tempo único e diferente de tudo o que foi surgindo. Tornou-se um artista que com os anos conseguiu montes de encomendas de peças (cada vez mais), está integrado no sistema mais vanguardista de bandas sonoras na Hollywood pós-Netflix, e, mais importante que tudo isso, sabe muito e sempre tem estado atento àquilo que a música de todos os quadrantes e vertentes tem para lhe oferecer. Pelo meio contribuiu musicalmente de maneira decisiva para catálogos editoriais como o da Hippos In Tanks, ajudou à revitalização da Mego, à exponenciação da RVNG Intl., para além de ter criado a sua etiqueta, a Software (entretanto defunta).

O disco é sofisticadíssimo no sentido literal e figurativo, na utilização vernacular, musical, sonoplástica dos vários vocabulários que acaba por reunir. Está emocionalmente envolvido, mas tem esta blindagem cínica que o protege (ele sabe que não, no fundo) de todo o assalto babilónico. Cruza eras, momentos, tempos, texturas, atomizações de géneros musicais; procura sempre inventar algo de novo e deixá-lo imaculado. Consegue-o por sobreposição, com estilo actual e absolutamente próprio. Acima de tudo — e é também por isto que o disco interessa — consegue materializar até que ponto é que aqui na selva estamos tão à toa, tão perdidos, tão mal governados, tão gananciosos e burros. Para quem prestar atenção está tudo na temática do disco: desespero e desamparo por todo o lado — adornos requintados e cáusticos na lateral. Na capa, uma imagem de um futurismo passado, entre logótipos de entidades mais e menos misteriosas, no que no geral é um trabalho gráfico fabuloso em todo o objecto do disco.

Como os seus colegas de carteira James Ferraro ou Dean Blunt, Lopatin — ainda para mais tendo ele particularmente vindo de um background geek e isolacionista —, conseguiu erigir uma obra de admiração distanciada ao lado mais escuro do monumento que nós parimos enquanto sociedade. Conseguiu quebrar a ordem normal do referencialismo artístico, restando só detalhes de fragmentos de informação humana, musical, criativa, transpostos para novos emolduramentos. Está cá o barroco, uma linha de baixo que parece dos Tool, uns teclados Boards of Canada, uma melodia Depeche Mode perdida, mas (até nisto) nada a que nos possamos realmente agarrar. São poemas-paisagens, quase por inteiro sem uma marcação obviamente percussiva; geométricos, globalistas, altamente concretos; estruturas vivas onde instrumentos e mementos de civilizações diplomaticamente se relacionam.

O que aqui fica em brutal retrato, acima de tudo o resto, é a decadência da empatia. O medo. Ausência de solidariedade. No fundo, uma leitura sobre as coisas que perfaz o quadro completo da depressão, aqui tão sem simulacro, nem estruturas alegóricas, nem neoconceptualismos rotundos. Quem quiser entrar mesmo aqui dentro, como quem entrou em Unknown Pleasures, Closer, Another Green World ou In Utero, talvez não saia exactamente a mesma pessoa.

Age Of. Bom título. Siga matar o cinismo e a mentira. Quanto mais não seja porque isso está a magoar Daniel Lopatin, e tanta mais gente. Dificílimo de engolir, incrivelmente necessário, impecavelmente acabado. Um clássico contemporâneo.

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