“Se não brincar comigo próprio, não tenho o direito de brincar com os outros”

O seu romance mais recente é também o mais hilariante. É protagonizado por um escritor que é assassinado no dia em que vai lançar o livro que põe fim a vários anos de abstinência da escrita. Germano Almeida, o mais recente escritor lusófono canonizado pelo Prémio Camões, não é só o mais lido e o mais traduzido dos escritores de Cabo Verde. Deve ser, também, o mais bem-humorado.

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Daniel Rocha

Germano Almeida (n. 1945), o mais recente escritor lusófono canonizado pelo Prémio Camões, não é só o mais lido e o mais traduzido dos escritores de Cabo Verde. Deve ser, também, o mais bem-humorado. E o mais desempoado. O autor de O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989), O Meu Poeta (1990), Os Dois Irmãos (1995) e de mais uma dúzia de livros que se contam entre os mais populares da literatura cabo-verdiana contemporânea, veio a Lisboa apresentar O Fiel Defunto. O seu romance mais recente, e também o mais hilariante, é protagonizado por um escritor, chamado Miguel Lopes Macieira, que é assassinado no dia em que vai lançar O Último Mugido, livro que põe fim a vários anos de abstinência da escrita. É montado um funeral de estadão, como convém aos costumes. Mas o malicioso escritor, embora morto, não se deixa apanhar. Embora já lhe preparem uma fundação póstuma. Entrevistado, o escritor Germano Almeida também não se deixou apanhar pela nosso imp(r)udente siso.

O que é que o escritor Germano Almeida tem contra os pastéis de nata?
Contra os pastéis de nata? [risos] Por que é que me pergunta isso?

A dada altura, em O Fiel Defunto, o escritor Macieira vai almoçar com amigos e tudo corre bem, excepto a “fraca sobremesa” que encontram na pastelaria Morabeza: “um desenxabido” pastel de nata.
Não, não! De facto, eu até gosto muito de pastéis de nata. Mas é capaz de ser alguma provocação. Da personagem. Não minha, necessariamente.

Creio que os jurados do Prémio Camões, pelo menos os portugueses, não leram este livro antes da atribuição.
Senão, não me teriam dado o prémio [risos]. Felizmente, o livro não estava publicado ainda.

Passaram alguns dias desde o anúncio do prémio. Já pensou no que ele possa significar para si?
Tenho estado a pensar nisso, mas ainda não consigo juntar o Germano Almeida com o fulano que recebeu o Prémio Camões. Continuam a ser duas pessoas e eu, enquanto Germano Almeida, continuo a observar o outro. É como se não fosse eu. Não interiorizei ainda a eventual importância de ter ganhado. Ter ganhado, não. Ter recebido o Prémio Camões. Evito usar a palavra ganhar porque não é nenhuma luta. Mas ainda não me familiarizei com a ideia de que o Prémio Camões foi atribuído a um contador de histórias.

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Por que é que continua a designar-se contador de histórias?
É verdade, continuo a chamar-me contador de histórias. Com este livro, achei que andava a escrever um romance e fartei-me de dizer: “Desta vez, estou a escrever um romance.” E achei que tinha publicado um romance. Mas o livro não tem nada de especial que o caracterize como romance. Mas também não tenho de virar romancista, de maneira que deixo-me continuar contador de histórias. É a minha condição habitual.

O Prémio Camões tem uma importância particular na pretendida conformação da chamada comunidade lusófona. Tem cumprido, tem sido útil?
Um prémio é sempre, sobretudo, um incentivo para quem escreve. Sou defensor da existência do maior número possível de prémios. Claro que a atribuição a este ou àquele depende sempre de muitas coisas. Escolhendo-me a mim, preteriram outros, o que não lhes retira importância. Esses outros continuam a ser tão importantes ou até mais importantes do que eu próprio. De maneira que atribuo a qualquer prémio uma importância relativa. Mas é óptimo a gente receber prémios, que têm sempre a vantagem de darem uma certa visibilidade aos escritores. Mas isso não os torna melhores escritores. Já me têm perguntado se agora, tendo recebido o Prémio Camões, vou escrever mais. De forma nenhuma. Vou escrever de forma normal. Nunca me senti pressionado para escrever.

Tem mais leitores em Cabo Verde ou em Portugal? E no Brasil?
No Brasil não tenho leitores, até onde sei, ou então tenho poucos. Vou tendo. O meu primeiro livro publicado no Brasil, há já alguns anos, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, vendeu três ou quatro exemplares no espaço de um ano. É em Cabo Verde que eu sou mais lido, obviamente. E, depois, em Portugal.

Não é, portanto, um escritor para exportação.
Não. Aliás, costumo dizer que escrevo para ser lido em Cabo Verde porque quero ser entendido pela minha gente. Se sou entendido também pelos outros, fico contente, é óptimo. Mas não escrevo com a preocupação, digamos, de ser entendido em Portugal, ou no Brasil, ou em traduções. Não tenho essa pretensão.

Em O Fiel Defunto, “o grande escritor” Macieira regressa a Cabo Verde feito homem maduro e aposentado. Sabe, por acaso, o que é que ele fizera antes, em Lisboa?
É uma boa pergunta, porque eu mesmo não sei [risos]. Fui criando essa personagem a partir do nada. Uma amiga minha, que é crítica literária, disse-me: “Você tem uma personagem de quem  a gente não sabe nada e se calhar tem de escrever um segundo volume para a gente ficar a saber alguma coisa.” Tenho consciência de que não sei o que é que ele fazia antes. E também não me preocupei com isso. Mas é natural que tenha de inventar-lhe uma profissão.

Boas notícias, portanto. Não está posta de parte a hipótese de que venha aí novo volume protagonizado pelo “grande escritor das ilhas”.
Sim, não está posta de parte essa hipótese, na medida em que ficaram muitos pontos em aberto, incluindo a exigência de ele ser cremado em praça pública. A gente tem de resolver isso! [risos]

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Macieira regressa a Cabo Verde e logo dá uma entrevista anunciando que não vai à procura de nenhum cargo. É vício recorrente!
[Risos] É, é uma coisa recorrente em Cabo Verde. Agora nem tanto, mas já tivemos muito isso. O pessoal fazia toda a sua carreira de funcionalismo no exterior, em Portugal sobretudo. Depois aposentavam-se, iam para Cabo Verde e queriam mandar, exercer cargos políticos e tudo o mais. [risos] Nós estamos aqui a alombar há não sei quantos anos e vocês vêm de fora e vêm exigir mandar em nós? Então, o Macieira diz: “Não venho ocupar o lugar de ninguém, eu venho é escrever.” É uma brincadeira também, mas que não é completamente inocente. Havia muito essa ideia de que os que vêm de fora é que sabem. Eu costumo dizer: Nós, que passámos a vida aqui, ainda não aprendemos a resolver os nossos problemas, como é que vocês que passaram a vida fora sabem como resolver os nossos problemas internos? Não! Venham com calma, aprendam, instalem-se, virem cabo-verdianos! Vocês, quando vêm de fora, ainda não são cabo-verdianos, têm primeiro de aprender a ser.

Depois de uns bons  anos a “parir gémeos”, pois nunca publicava um livro só, o escritor Macieira decide deixar de escrever a meio de uma crónica para um jornal sobre a “identidade política” cabo-verdiana. Mero acaso ou o tema já não é pertinente?
É natural que esse problema esteja ultrapassado. Já há muito tempo que afirmámos a nossa identidade, quer politica, quer social, quer cultural. Já não temos nada de novo para dizer sobre isto. O Macieira deu conta de que estava farto. Andava a escrever para quê? A troco de quê? Andava cansado, perdeu a família, perdeu a mulher, perdeu os seus passeios e tudo o mais. E para quê? Para escrever livros. E resolve viver. No fundo, é essa ideia que também tenho, e confesso que aprendi isto com o Macieira: escrever é um prazer, eu escrevo por prazer, mas, para termos tempo para escrever, perde-se imensas coisas, inclusivamente perde-se a família. Não foi o meu caso, a minha mulher não me abandonou [risos], porque também era viciada no trabalho.

Curiosamente, o abandono da escrita é acompanhado, ou sublinhado, por uma certa impotência sexual, coisa que já ocorria, se bem me lembro, em O Meu Poeta.
[Risos] Já não me lembrava de O Meu Poeta. Mas acho que ele não fica impotente por causa de não escrever, ele fica impotente por causa da ausência da mulher. Bom, é natural também que, com a idade dele, já não tivesse assim grande apetência sexual. Mas o que acontece é que, perdendo a mulher, ele constata que ficou sem nada. Então, abandonar uma crónica a meio, já não tem grande importância.

Quando diz que escrever não é um trabalho...
Para mim não é trabalho.

... é um prazer, não corre o risco de desvalorizar socialmente o papel do escritor?
Não sinto isso. Às vezes, numa crónica ou noutra que escrevo nos jornais, de natureza política, posso ter essa preocupação de intervir socialmente, mas sem pensar que estou a influenciar seja quem for. Não creio que a escrita em si seja determinante para a influenciação da sociedade. Escrevo pelo prazer de escrever, dá-me prazer escrever, divertir-me a mim próprio escrevendo, e é nesse sentido que digo que escrever não é trabalho, é uma coisa lúdica. Mas esse não-trabalho é uma forma de me divertir que me priva de muitos outros divertimentos. E nesse sentido é que digo que, no acto de escrever, a gente perde a família e perde os amigos, porque estamos concentrados num prazer egoísta que é estarmos com os personagens literários.

Nada oponho a que um escritor se divirta a escrever, tanto mais quanto abundam os escritores sofredores e angustiados diante do ecrã vazio.
[risos] Acho piada a esses escritores sofredores que acham que têm de mudar o mundo. Felizmente, não tenho nada com isso. Escrevo porque quero escrever. Não sou capaz de sentar-me e obrigar-me a escrever. Quando não tenho nada para escrever, não escrevo. Leio. Há tanta coisa que a gente pode fazer! Não desvalorizo a função do escritor, mas também não lhe dou uma tão grande importância que chegue a pensar que é uma função essencial.

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Mas havendo tendência para se pensar que o prazer não precisa de ser remunerado, alguns escritores receiam que o seu trabalho não seja levado a sério, enquanto trabalho.
Não acho que seja uma questão de não os levarem a sério. Eu tenho também a tineta de pensar que o trabalho intelectual não devia ser pago [risos]. Por exemplo, não me importo nada que plagiem os meus livros, que façam publicações clandestinas. É uma forma de os divulgar. Se for útil, não tem qualquer importância. Não sou capaz de perseguir seja quem for por ter feito uma publicação de uma coisa minha contra minha vontade, sem me perguntar. Não tenho essa ideia de posse da minha obra. Pelo contrário, se pudéssemos dar os livros às pessoas, acho que o faria. Infelizmente, somos pobres. Estou a pensar, por exemplo, na componente financeira do Prémio Camões, que é muito importante quando somos pobres. Mas se fosse um homem rico, não me preocuparia com o aspecto financeiro e diria: Vamos publicar livros de graça para as pessoas terem acesso a eles. Infelizmente, não posso!

Ainda exerce como advogado?
Sim, continuo a ganhar a minha vida como advogado, embora cada vez menos, porque, com a crise, a advocacia ficou em crise também, em Cabo Verde.

Para si, a escrita foi sempre marginal?
Sempre. Eu costumava dizer que os livros dão-me para comprar vinho, não mais do que isso. [risos]

Pode dizer-se que começou a publicar tardiamente. Porquê?
Comecei a escrever muito cedo, escrevo desde miúdo, mas nunca escrevi com intenções de publicar. Comecei a publicar quando calhou fundarmos a revista Ponto & Vírgula, nos anos 80. Foi lá que comecei a escrever para publicar, porque precisávamos de textos para encher a revista.

Tal como aconteceu em Portugal, depois do 25 de Abril, não havia originais nas gavetas, à espera de oportunidade?
Aconteceu a mesma coisa em Cabo Verde. Achávamos que deveria haver muita gente com coisas para publicar. Não havia nada. Ou então havia muito pouco. Curiosamente, os escritores mais velhos, Baltazar Lopes, Aurélio Gonçalves, Manuel Lopes e outros, é que nos enviaram textos para publicação. Os novos, curiosamente aqueles que nós desejávamos mais, não tinham nada. Tivemos de alimentar a Ponto & Vírgula com os escritores mais velhos e depois apareci lá com umas histórias que foram escritas, de facto, para preencher páginas.

E foi então que lhe tomou o gosto.
Tomei o gosto à publicação e escolhi um pseudónimo: Romualdo Cruz . Mas em Cabo Verde conhecemo-nos todos uns aos outros e as pessoas não atinavam com quem era o Romualdo Cruz. Quem é esse fulano? Os outros colegas editores acabaram por dizer que era eu, porque as pessoas gostaram muito daquelas histórias. E a partir daí achei que era inútil continuar com o pseudónimo, já não valia a pena.

Passaram 30 anos, publicou 18 livros. O que é que se alterou nas condições de produção e de circulação da literatura em Cabo Verde?
Quando publicámos o primeiro livro, O Testamento do Sr. Napumoceno, uma edição cabo-verdiana era de 350 exemplares. Decidimos publicar 700 exemplares. E os livros esgotaram-se em dois meses, porque as pessoas acharam que aquilo era um corte com a literatura cabo-verdiana tradicional. E dois meses depois fizemos uma segunda edição. Aliás, a primeira edição de O Testamento... foi o último livro impresso em S. Vicente em caracteres móveis. Depois passou a usar-se o offset. Agora já vamos fazendo edições de mil exemplares que se esgotam num ano e tal. Este [O Fiel Defunto], estou convencido de que se vai esgotar em menos tempo.

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Refere-se à editora Ilhéu?
Sim, aliás, eu é que tive a ideia de fundar a editora Ilhéu, porque, quando escrevi O Testamento..., pensámos em publicar, mas como? O Instituto do Livro [cabo-verdiano] não dava vazão às solicitações, e então decidimos criar uma editora. Neste momento já há bastantes editoras, umas seis ou sete. O problema é as pessoas, os editores, acreditarem nos escritores novos.

A actividade editorial é subsidiada pelo Governo?
Não, e tenho vindo a insistir nessa necessidade porque, se queremos ter uma literatura cabo-verdiana com alguma pujança, com alguma projecção, o Governo tem que criar prémios para incentivar os jovens a escrever e depois fomentar a sua publicação no exterior, subsidiando as editoras estrangeiras.

Avaliando por alguns dos seus livros, Cabo Verde normalizou-se politicamente, mas o descontentamento continua.
Bom, o descontentamento é capaz de ser o estado normal do cabo-verdiano. De facto, a democracia política está instituída, já não está em causa. Há outras formas de descontentamento, muitas outras. Há um certo novo-riquismo que incomoda, sobretudo na Cidade da Praia. Em S. Vicente não tanto. Os são-vicentinos acusam o Governo de ter abandonado S. Vicente. Eu não vou tão longe, mas costumo dizer que as medidas que o Governo tem tomado relativamente a S. Vicente não têm sido as melhores e não se têm mostrado muito úteis para o desenvolvimento da ilha.

O defunto Miguel Macieira é, neste livro, “o grande escritor das ilhas”, o mais traduzido, o mais conhecido no estrangeiro. Faz lembrar um certo Germano Almeida.
[risos] Eu estou vivo, portanto não posso ser eu! Mas, sim, há uma certa auto-ironia. Sempre defendi que, se não brincar comigo próprio, não tenho o direito de brincar com os outros.

Podemos ler esta história como a de um escritor cansado de enfeitar a lapela do poder?
Também é verdade, o livro foi escrito na perspectiva da recusa do escritor em ter esses salamaleques sociais. Mas a gente não consegue evitar. Não é fácil fugirmos a isto, mesmo a nível popular. Eu vejo a quantidade de cumprimentos que recebi agora, e não só em Cabo Verde. Mas sobretudo os cabo-verdianos sentiram este Prémio Camões como uma coisa deles. Aliás vão-me avisando: o dinheiro do prémio pode ser para ti, mas a honra é para nós. E eu digo: está bem, podem ficar com a honra, que eu fico com o dinheiro. [risos]

Ou como uma reivindicação da autonomia do escritor?
Sim. Não podemos expressar livremente o nosso pensamento, quando ele seja contra os poderes instituídos, e ao mesmo tempo querer que os poderes instituídos nos vangloriem. Eu sou contra alguns escritores que se permitem dizer mal dos governos, mas depois querem que os governos os reconheçam. Isso não faz sentido. Quem não se sente não é filho de boa gente! Aliás, há uma expressão na minha ilha que diz: quem não quer a pátria, não quer a bandeira. Um escritor não pode querer o estatuto de poder falar livremente e, por outro lado, ser insensato.

Já sabemos que este volume não será O Último Mugido [o livro fictício de Macieira] de Germano Almeida. Já tem a sua Pilar, a sua Mariza ou, pelo menos, a sua fundação em perspectiva?
Não, isso garanto-lhe que não tenho! [risos] Costumo dizer a brincar que, se ganhasse, por exemplo, o Euromilhões, então, sim, criaria uma fundação. Detesto essa ideia de fundações, porque faz-se uma fundação e depois vai-se pedir dinheiro ao Estado. Há uma fundação que respeito imenso, a Fundação Gulbenkian, da qual fui bolseiro nos anos 70, e que gere as suas coisas com os seus meios próprios. Uma fundação que tem de ir pedir dinheiro ao Estado para fazer os seus favores não faz sentido.

Há muitas em Portugal.
Eu sei, e acho que das coisas boas que o Passos Coelho fez foi cortar nas fundações [risos].

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Cabo Verde vai assumir a presidência da CPLP. O que pensa do assunto?
A CPLP é uma instituição na qual depusemos grandes esperanças. Não tem funcionado como nós contávamos que pudesse funcionar. Mas a ideia é útil e é boa. Em que sentido? No sentido de que nós, países que funcionam com a língua portuguesa, não podemos desavirmo-nos. Temos essa coisa formidável, que o sistema colonial nos deixou, que é termos uma língua que nos une. É bom haver uma comunidade de países de língua portuguesa. Poderia ser melhor ou deveria ser melhor? Acho que sim. Mas teria que ter meios. Tal como está é muito pouco expressiva. Existe, mas existe quase só no papel. Não se sente a presença da CPLP no conjunto dos países. É mais honorífica do que propriamente útil.

Qual é a situação actual do crioulo em Cabo Verde?
Não está normalizado e não sei se o será nos tempos mais próximos. Criou-se há uns anos uma coisa chamada ALUPEC [Alfabeto Unificado Para a Escrita do Cabo-Verdiano], mas deu muita contestação, foi uma coisa criada em gabinete, que não terá tido em conta outras valências sociais, e a ideia foi distanciar o crioulo do português. Eu acho que isto é um erro. Um exemplo muito simples: quando eu vejo a palavra casa escrita com k, ninguém me diz que é a minha casa, a casa onde eu moro, é qualquer coisa que eu não sei o que é. Casa, para mim, tem que ser escrita com c. O crioulo estar próximo do português por causa disto, paciência. Não é por causa disto que a gente nos vamos distanciar. Por exemplo, havia letras que não existiam em crioulo porque, a existirem, seria português. Eu acho absurda, esta tentativa de afastamento. Uma língua serve para transmitir uma cultura e não é por ser mais próxima ou mais distante do português que deixa de transmitir essa cultura. Do mesmo modo, por exemplo, que os escritores cabo-verdianos usam a língua portuguesa, como aliás os angolanos e os moçambicanos, para transmitirem a cultura o seu país. Claro que será desejável nós virmos a ensinar o crioulo porque quem tem duas línguas está a ganhar sobre quem tem uma só. Mas não podemos é correr o risco de qualquer tentativa de dizer: vamos trocar o português pelo crioulo. Nunca! Termos duas, muito bem. Ter de ficar uma só como língua oficial, vai ter de continuar a ser o português. Termos o crioulo como língua única é afastarmo-nos do mundo, é isolarmo-nos. Ora, já nos chega o isolamento de sermos ilhéus.

Mas acha desejável e viável haver duas línguas oficiais?
Sim, acho que podemos ter duas línguas oficiais, porque se há uma coisa oficial em Cabo Verde é o crioulo. Não está escrito no papel, não está na Constituição, mas digamos que o mundo em Cabo Verde funciona em crioulo.

A propósito de normas, segue o Acordo Ortográfico (AO) de 1990?
[risos] O Acordo Ortográfico para mim é um problema, porque neste momento não sei em que língua escrevo. Escrevo no português que me ocorre e, quando o computador me dá uma indicação de que estou errado, vou ver em que é que estou errado. Acho que se transformou isto num cavalo de batalha que não se justifica muito. Pode haver coisas que não estão bem no AO, há coisas que são absurdas, há outras que nos ofendem, a nós que estamos habituados a usar a língua portuguesa, coisas que ofendem a nossa sensibilidade, mas isso não quer dizer que se deva rejeitar o acordo em si, porque é bom termos uma língua cuja ortografia seja extensível aos países que a utilizam.

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