Lá onde cresce o perigo

Podemos afirmar que a declaração conjunta franco-alemã também constitui uma vitória de e para Portugal.

A Europa volta a ser fustigada por adversidades muito perigosas. Não me refiro sequer à Europa enquanto projecto político consubstanciado na União Europeia, mas à Europa enquanto espaço e tempo de uma determinada ideia de civilização. Olhando para a Itália e para a horripilante solução governativa que aí se impôs por vontade maioritária do eleitorado, observando o Leste e constatando o triunfo de uma linha de pensamento declaradamente iliberal que lá faz carreira, mirando a Norte e percebendo aí o avanço dos egoísmos nacionais, dificilmente poderemos deixar de ficar profundamente preocupados com o destino europeu. Resta-nos talvez o recurso à memória e à inspiração do mundo cultural que ainda vai moldando as nossas estruturas mentais. Perante tal estado de coisas, acreditemos na validade do que escreveu Hölderlin: “lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva”.

Emmanuel Macron e Angela Merkel encontraram-se anteontem num castelo dos arredores de Berlim a fim de procurar alcançar um entendimento básico em torno dos assuntos de maior acuidade da vida política europeia. Ao longo do primeiro ano do seu mandato, Macron produziu quatro importantes discursos sobre a Europa, proferidos em locais devidamente escolhidos pelo seu peso simbólico: Atenas, a Sorbonne, Estrasburgo e Aix-la-Chapelle. Nesses textos explanou um pensamento profundamente pró-europeísta, definiu objectivos estratégicos e enunciou iniciativas concretas.

Ao regresso da França, através da voz culta e convicta do seu Presidente, pareciam opor-se uma subtil rejeição alemã e uma obstinada discordância de alguns países do Norte. Merkel afigurava-se diminuída, quer pelas dificuldades verificadas no processo de formação do novo governo, quer pelo crescimento de posições extremistas assentes na contestação à sua política migratória. De um certo modo foi-se criando a ideia de que Macron estava destinado à incompreensão e ao isolamento naquilo que alguns já sugeriam ser a sua obstinação europeia. Anteontem, contudo, as coisas mudaram significativamente. Os dois líderes entenderam-se em torno de duas questões essenciais: a criação de um orçamento para a zona Euro e o reconhecimento da necessidade de uma maior solidariedade intra-europeia na abordagem da questão da imigração. Apesar desse entendimento ter ainda um carácter bastante vago, representa já um inquestionável avanço.

Há muito que se estabeleceu um consenso quanto à premência de reformas na zona monetária europeia. Algumas delas foram sendo concebidas e aplicadas nos últimos anos, mas permanece ainda muito por fazer. A criação de um orçamento próprio da zona Euro constitui uma opção de relevantíssimo significado, que poderá contribuir decisivamente para a promoção da convergência económica entre os vários países e para a progressiva concretização de alguns princípios de solidariedade que têm animado o percurso histórico deste projecto. Até aqui, a Alemanha tinha manifestado uma grande resistência a uma iniciativa desta natureza. Por isso mesmo, o passo dado anteontem poderá e deverá revelar-se de uma importância crucial na vida europeia. É certo que há ainda um longo caminho a prosseguir, o qual passa pela superação da resistência de vários Estados-membros, pela pormenorização da ideia agora apresentada e pela sua aplicação prática.

Trata-se sem dúvida de uma grande vitória da persistência do Presidente francês, que ao longo dos últimos meses pôde contar com o apoio firme de alguns outros governos nacionais, entre os quais se inclui o executivo português. Nessa perspectiva poderemos afirmar que a declaração conjunta franco-alemã também constitui uma vitória de e para Portugal. Aliás, e como aqui já várias vezes o referi, António Costa tem-se destacado como uma das mais proeminentes figuras da actual constelação de líderes políticos explicitamente comprometidos com a opção europeísta.

Deveremos igualmente registar a relevância do acordo alcançado em relação à política migratória europeia. Depois da obscena posição tomada pelo governo italiano e da notável resposta dada pelo novo executivo espanhol, e face ao risco de desagregação da metade direita da maioria parlamentar alemã, este entendimento tornara-se indispensável. Aí foi Macron que cedeu, o que aliás só honra os melhores pergaminhos da história republicana francesa.

Ao que dizem as notícias, os dois líderes também terão acordado patrocinar a instauração das listas transnacionais, de modo a que estas possam ver a luz do dia nas eleições para o Parlamento Europeu de 2024. Neste caso estamos perante um inequívoco sucesso simbólico de quantos nelas perspectivaram um avanço no plano da consciencialização progressiva de uma verdadeira cidadania europeia. Sendo certo que o tema ainda originará um amplo debate com resultados obviamente imprevisíveis.

O que se está hoje a passar no espaço político europeu é de tal ordem importante que reclama de todos os intervenientes, aos mais diversos níveis, um esforço de clarificação de posições e uma disponibilidade para a prossecução de uma discussão que não esteja entrincheirada numa retórica ora dogmática, ora dominada pela vacuidade dos lugares-comuns, ora preocupada com o simples exercício da propaganda. Creio que no que toca a Portugal estaremos todos em condições de garantir a realização de uma tal discussão.

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