O início do fim dos tempos anormais

Estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.

Estamos a viver um período extraordinário, e a primeira coisa a ter em atenção é isso mesmo: saber que são tempos anormais.

Na sequência da grande crise financeira de 2007/2008, que atingiu em cheio a União Europeia através da dívida pública e de uma arquitectura política e económica imperfeita, os bancos centrais foram chamados a intervir.

No caso do Banco Central Europeu (BCE), este reagiu mais tarde do que a Reserva Federal norte-americana, numa lógica de impactos geográficos com diferentes fusos horários, e hoje não deixa de provocar um certo sorriso nervoso o facto de ter chegado a subir a taxa de juro de referência no início de 2011, como se os problemas estivessem a ser resolvidos.

Certo é que, com Mario Draghi, o BCE acabou por intervir em força em plena crise do euro, usando medidas convencionais como a descida dos juros mas para níveis inimagináveis (zero) e atravessando novas fronteiras como a compra de dívida pública dos Estados-membros.

Na passada quinta-feira, cerca de três anos depois do início da grande intervenção para recuperar a economia europeia, Draghi começou o processo de normalização ao anunciar que deixará de comprar mais dívida no final do ano (mas sem deixar de manter os actuais níveis que detém no seu balanço, algo que terá de ser resolvido no futuro).

Isto depois de ter aplicado mais de dois biliões de euros em toda a zona euro, dos quais 33 mil milhões de euros em Portugal (equivalente a cerca de 17% do PIB), ajudando-nos assim a manter o custo da dívida a níveis suportáveis quando as agências de rating ainda nos olhavam de lado (com excepção da canadiana DBRS, algo que vale sempre a pena recordar). A partir de agora, está tudo nas mãos dos mercados, atentos a temas como a evolução da política italiana e à forma de resolver a questão da dívida grega.

Temos, depois, a questão das taxas de juro de referência, também elas ligadas à dívida, já que implicam maior ou menor custo do dinheiro. E estas estão em zero há mais de dois anos, mais concretamente desde Março de 2016. Na semana passada, Draghi deu sinais claros de que não haverá alterações pelo menos até ao Verão do ano que vem (curiosamente, a sua saída do cargo vai ocorrer em Outubro).

Esta terça-feira, no encontro que se realiza em Sintra, o líder do BCE explicou-se um pouco mais: “Vamos manter-nos pacientes na determinação do momento da primeira subida das taxas de juro e teremos uma abordagem gradual no ajustamento da nossa política a partir daí”, afirmou. Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, diz-se, e essa estratégia de prudência face à forma como a retoma da economia europeia se está a desenvolver é a que mais convém a Portugal. É que as dívidas ainda são mais do que muitas, entre Estado, empresas e famílias.

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Tem havido um esforço geral de redução do endividamento desde 2011, mas é também preciso ter em conta que parte explica-se não por menos procura mas sim por menos oferta de crédito - uma espécie de desalavancagem forçada – e outra é apenas o resultado da limpeza de balanço dos bancos de créditos que nunca seriam pagos – e não porque houve quitação da dívida.

Olhando para o esforço feito, é um facto de que o Estado tem procurado diminuir o peso da dívida - com algum controlo das contas e estratégias como a antecipação dos pagamentos ao FMI -, muitas empresas estão a recorrer mais a financiamento alternativo e não apenas aos bancos – incluindo aqui o reforço ao nível interno, com menor endividamento – e os particulares também estão a fazer melhor as contas depois do susto dos anos da troika de credores e do desemprego a dois dígitos. Neste último caso, é com algum receio que assisto ao preço do imobiliário em zonas como Lisboa e Porto, para quem esteja a comprar casa com recurso aos bancos.

Uma análise recente do Banco de Portugal nota que tudo aponta para “a existência de uma ligeira sobrevalorização dos preços” desde o terceiro trimestre de 2017. Desta vez não há tanto crédito a rolar para adquirir casas, porque há muito dinheiro a vir de fora - e algum de dentro - ligado a investimentos no imobiliário (sejam ou não direccionados para o turismo, através do alojamento local), mas é precisamente esse concorrência, influenciadora dos preços em alta, que enfrenta quem está a comprar a sua casa para habitar. “No período recente, o aumento continuado dos preços do imobiliário residencial foi apenas parcialmente acompanhado por aumentos do rendimento disponível das famílias”, evidencia o Banco de Portugal.

Tem, também, havido menos restritividade na concessão de crédito, com tudo o que isso significa ao nível de preços mas também de análise de esforço e risco. Voltemos ao início: estamos a viver tempos extraordinários, e é importante termos a noção disso. O BCE já deu os primeiros passos para normalização, e, mesmo depois do Verão de 2019, e devagar, as taxas de juro são subir, subindo com elas os custos das dívidas. É bom estarmos todos bem preparados para o normal.

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