Absurdos na governação da Justiça

É simplesmente enganoso dizer que as medidas de cosmética previstas solucionam o problema em dois anos. É necessário muito mais.

Vamos imaginar uma pessoa que precisa de seis horas para completar os 42 quilómetros da maratona e acha que se treinar para correr mais depressa os últimos 100 metros ainda pode ir aos jogos olímpicos. ­Parece absurdo, não parece?

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Vamos imaginar uma pessoa que precisa de seis horas para completar os 42 quilómetros da maratona e acha que se treinar para correr mais depressa os últimos 100 metros ainda pode ir aos jogos olímpicos. ­Parece absurdo, não parece?

Então e se for um governante a dizer que um processo judicial, que demora 10 anos à espera de sentença, vai andar mais rápido, só porque agora a notificação electrónica da sentença demora milésimos de segundo e não os 3 dias do correio? Não parece absurdo também?

Pois, é isso mesmo. Há maneiras de governar que não parecem sérias. Vamos ver uma.

Há nos tribunais administrativos e fiscais 15.000 processos anteriores a 2013 parados à espera de sentença (alguns há 15 anos). O problema, de longe o mais grave da justiça portuguesa, não pára de piorar de ano para ano. Os governos assobiam para o lado, enquanto floresce o negócio privado das arbitragens fiscais – que vale muitos milhões. As grandes empresas pagam fortunas a árbitros e têm as suas sentenças em meses; o cidadão comum e a pequena empresa vão para a lista de espera, anos e anos a fio.

E que soluções propõe o Ministério da Justiça para este problema dramático?

Em primeiro lugar, a insistência na desmaterialização e automatização electrónica do processo. Isto é pôr um Kamov a despejar água ao lado do incêndio. Pode ser muito interessante para ir ao estrangeiro mostrar que temos uma justiça muito tecnológica e moderna, mas não resolve o problema das pessoas que desesperam enquanto não vêem os seus assuntos resolvidos no tribunal.

Em segundo lugar, mais um pacote legislativo. Outra vez o milagre de fazer omeletes sem ovos. Diz o Governo que dentro de dois anos (quando a Sra. Ministra da Justiça já se tiver ido embora) está tudo resolvido. Com quê? Com meia dúzia de leis, pois claro.

Vamos então fazer umas contas simples, que qualquer pessoa percebe. O valor de referência processual aplicado nos tribunais administrativos e fiscais aponta para uma média de 150 processos findos anualmente por juiz. Sendo assim, para liquidar aquele passivo de 15.000 processos em dois anos, são precisos mais 50 juízes. Mas é preciso ter em conta que a formação de um juiz demora três anos e o Centro de Estudos Judiciários (onde os juízes são formados) tem uma capacidade limitada. Portanto, mesmo começando já, reforçando a admissão extraordinária de juízes até ao limite possível, só daqui a oito anos, na melhor das hipóteses, teremos os tais 15.000 processos todos terminados.

Mas o Governo diz outra coisa. Que resolve tudo em dois anos sem precisar de mais juízes. Isso é absolutamente impossível.

Entram nos tribunais administrativos e fiscais 25.000 novos processos em cada ano. O actual contingente de juízes consegue terminar 105 processos por cada 100 que entram (a taxa de resolução de 2017 foi de 105%). Portanto, se deslocarmos uma parte destes juízes para tratar daqueles 15.000 processos, não resolvemos nenhum problema e vamos criar outro. Os processos atrasados vão atrasar mais ainda e os que agora entram e têm resposta rápida vão passar a atrasar também.

É simplesmente enganoso dizer que as medidas de cosmética previstas solucionam o problema em dois anos. É necessário muito mais. Primeiro, obviamente, reforçar os tribunais administrativos e fiscais com mais juízes. E não é só na primeira instância. Não adianta nada se as sentenças depois pararem mais uns anos nos tribunais de recurso. Além disso, são necessárias medidas de simplificação processual, para resolver de forma sumaríssima questões que não têm importância. Não podemos ter juízes que perdem horas a ouvir testemunhas e a fazer sentenças das portagens das SCUTS, que em muitos casos valem cêntimos, enquanto as sentenças dos milhões de impostos ficam à espera – é isso que hoje acontece. É preciso também assumir o custo político de definir prioridades. Se não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, alguém tem de dizer o que é mais importante fazer primeiro. Por fim, é preciso ter mais ambição do que aquela que o Governo mostra, quando apenas considera processos antigos os anteriores a 2013. Isso é brincar com as pessoas que já aguardam sentença há 4 ou 5 anos. Qualquer processo com mais de dois anos é antigo e tem de ser tratado como tal.

Custa ver tanta insistência no absurdo de se achar que se pode resolver alguma coisa sem fazer nada.