Os amigos saltaram juntos no Coliseu com os LCD Soundsystem

Acabaram com a canção All my friends. E foi isso. Um concerto enorme para um Coliseu cheio de amigos, que recordaram, outra vez, por que é que os LCD são uma das mais entusiasmantes bandas das suas vidas. Estas quarta e quinta-feira há mais.

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Rita Rodrigues
Concerto, Microfone
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O final apoteótico deu-se com All my friends. Não foi surpreendente. Já todos o esperavam. Quando começou aquela trepidação rítmica em crescendo ouviram-se gritos, saltou-se, deram-se abraços, festejou-se a vida. Em palco, James Murphy, em contraste, no início da interpretação, deambulava calmamente, secundado por sete músicos em exaltação.

Por que é que aquela canção tem uma ressonância tão grande junto de tanta gente? Em primeiro lugar, porque é uma viagem. É uma jornada em torno do ritmo. Mas também porque identifica James Murphy, os LCD Soundsystem e muitos dos que cresceram a ouvi-los. Quando toda a gente explode aos gritos cantando "Where are your friends tonight?", é como se expressasse esse sentimento paradoxal de que a adolescência se foi mas, ao mesmo tempo, não se foi ainda. Fizemos as pazes com o passado, mas em simultâneo sabemos que ele se perdeu para sempre e não regressa.

É uma canção ao mesmo desconcertante e inclusiva, no sentido em que qualquer um se pode projectar nela. E isso é ainda mais exaltante ao vivo. Mesmo se não estivermos entre amigos, a multidão daquela noite são os nossos amigos. E depois há o som do piano, e as palavras, e essa combinação indefinível que parece mapear memórias, amantes, amigos, as nossas melhores noites e as angústias da manhã seguinte. Quem não?

A canção extraordinária que é All my friends é isso. É James Murphy, nos seus 40 anos, olhando para trás, e tentando atribuir um sentido ao que já foi, ao que é e ao que ainda pode ser. Uma mistura de nostalgia e de celebração. Aliás os melhores temas dos LCD Soundsystem são isso. O próprio James Murphy o fez notar a meio do concerto, quando tentava explicar para si próprio por que é que em Portugal sempre se sentira bem acolhido e compreendido, aludindo com ironia a essa dupla dimensão das suas canções, como se fossem música festiva mas também angustiada.

Percebe-se o que quer dizer. Quando o clímax de All my friends irrompe, e toda a gente se solta gritando "If I could see all my friends tonight", a euforia mistura-se com as emoções mais vulneráveis, momentos pessoais partilhados com quem sente algo semelhante, numa alquimia de sons e palavras que nos transporta para um patamar indefinível de superação.

Ao longo de quase todo o concerto foi assim. Sempre lá em cima, mas com humanidade e imperfeição. No início, James Murphy era um homem da sombra, dos bastidores, um produtor e um ideólogo. Tinha demasiada consciência das suas fragilidades para as querer expor – não é um cantor imaculado, não tem uma presença magnetizante e sabe que a música que faz surge do caos de influências e não a partir do nada. O seu segredo foi atrever-se a mostrar as suas imperfeições, não querendo ser o que não é. Quando o fez, talvez para sua surpresa, percebeu que gerava comunicação, um efeito de reconhecimento, fazendo com que os LCD Soundsystem fossem a anti-banda perfeita que viria a ser uma banda enorme. Uma verdadeira família. Em digressão, são agora cerca de 50 pessoas.

Ou seja, para sua contrariedade, transformaram-se numa máquina industrial com obrigações. Daí o fim. E depois o recomeço. No meio de contradições? Claro que sim. É de vida que falamos. Claro que existe encenação, uma bola de espelhos gigante que transforma o Coliseu dos Recreios numa imensa discoteca, por exemplo, mas existe acima de tudo uma consciência do seu lugar. Uma vontade de comunicar na horizontal. É por isso que James Murphy às tantas também disse que iam tocar a última, “mas apenas para irmos à casa de banho”, e depois regressar. Para ele, a mentira autorizada que é um encore, quando os músicos se despedem sabendo que daí a pouco voltarão enquanto a assistência finge que acredita, não funciona.

Mas antes já tinha acontecido um mar de coisas, que na verdade acabam por se interligar. O começo deu-se com Get innocuous, You wanted a hit e Tribulations, instituindo de imediato uma atmosfera celebrativa, com o Coliseu cheio, a suar as estopinhas, a responder em júbilo, mas o primeiro grande momento deu-se com I can change, teclados mais contemplativos, e a voz de James Murphy a vogar com à-vontade sobre esse manto atmosférico.

Pelo meio houve um piscar de olho a Radioactivity, dos Kraftwerk, interrompido por uma questão técnica, entrando-se no último álbum (American Dream, de 2017) com Call the police, pulsação rítmica elevada ao rubro, guitarra cortando o ar, enquanto baixo e bateria galopam, e os sintetizadores instituem alguma descontinuidade sónica, para tudo acabar em progressão e em grande ebulição.

Temperaturas mais elevadas, só com o êxito Daft Punk is playing at my house, com a linha de baixo a impor erotismo funk, ou com Movement, numa incursão roqueira cheia de dissonância e potência, com sintetizadores, bateria e guitarras em estridência total. Someone great, Tonite, do último álbum, e Home edificam outra vez o balanço físico mais temperado, preparando o terreno para uma magnífica versão de I want your love, dos históricos Chic, com Nancy Whang na voz.

Antes da ida à casa de banho, lançaram ainda o longo, percussivo e cósmico How do you sleep, retornando ao palco com essa excelente canção inspirada nos Suicide que é Oh baby, com James Murphy a discursar com devoção sobre Lisboa, dizendo que o faz “sem tretas, é mesmo verdade”.

Acreditamos. Até porque, de seguida, bateria, percussões, baixo, guitarra, sintetizadores e aquela atitude de palco sem mistificações voltam a estar em destaque com Dance yrself clean e com a tal canção, e acredita-se que o que vimos ali é uma possível aproximação à verdade da música. Quase duas horas depois do início, All my friends é a síntese de tudo, é colar os cacos do que se ouviu e sentiu antes. É sorrir, lacrimejar ou saltar para esse lugar onde cada um poderá sentir-se confortável com essa sensação de que não se está só. É perceber que os grandes momentos, o que se leva daqui, são coisas minúsculas como um enorme concerto entre amigos.

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