“Em Marrocos vive-se o futebol como se não houvesse amanhã”

Rui Águas jogou no único duelo que as selecções de Portugal e Marrocos tiveram até hoje.

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Rui Águas Miguel Manso

Desde que, em Dezembro de 1921, Portugal realizou o primeiro jogo oficial, foram mais de seis centenas as partidas disputadas pela selecção. Porém, apenas por uma vez portugueses e marroquinos estiveram frente a frente. Rui Águas foi um dos 13 jogadores que alinharam nessa partida de má memória (derrota, por 1-3), que confirmou o afastamento de Portugal do México 86, Mundial marcado pelo “caso Saltillo”. O actual seleccionador de Cabo Verde, garante que “nunca ficou muito claro para as pessoas o que realmente se passou” e que os jogadores, com “desgaste” da própria imagem, contribuíram “para que algo tenha melhorado nas selecções”. Conhecedor da realidade africana, Águas considera que Portugal irá defrontar no segundo jogo no Mundial 2018 um rival “muito pressionado” e acredita que Cristiano Ronaldo pode fazer um torneio “incrível” na Rússia.

Esteve no único confronto entre Portugal e Marrocos, no Mundial 86. Não é um jogo de boas recordações…

Era um jogo decisivo para nós. Começámos com uma vitória contra a Inglaterra, mas depois houve a lesão do Bento que abalou a equipa. Perdemos com a Polónia e chegámos a esse jogo a precisar do resultado...

Foi um Mundial repleto de peripécias. Começando pela preparação e pela viagem para o México...

Fomos a primeira equipa a chegar, com uma viagem que foi uma volta ao mundo. Deve ter demorado uns dois dias. O ambiente com a estrutura da federação era frágil e instável e tudo o que servisse para adensar este relacionamento contribuía para que as coisas piorassem. O estágio decorreu num contexto de guerra surda. A selecção era constituída por dois blocos rivais e estanques – FC Porto e Benfica -, mas essa situação acabou por nos unir na contstação. Toda a preparação, para além de longa, foi deficiente. Ou treinávamos num campo de treinos em Monterrey, que ficava a 70km do local onde estávamos, ou treinávamos num campo mais perto, que era a subir ou a descer, conforme o lado em que estivesses. Uma selecção nacional, num Campeonato do Mundo, e as condições básicas eram estas...

E assim começa o “caso Saltillo”. Os jogadores ameaçaram fazer greve se os prémios não fossem melhorados?

Da nossa parte, houve uma atitude em relação ao que considerávamos que não estava correcto, mas não parámos de treinar. Não era uma questão de pagar ou não pagar. Nunca ficou muito claro para as pessoas o que realmente se passou. Foi uma tomada de posição em relação ao autoritarismo e despotismo do [Silva] Resende e da gente que por lá andava. Foi uma preparação de clube amador. Mas no México as coisas não assumiram proporções tão graves como no Euro 84, mas em França a participação foi melhor e as coisas ficaram por ali. Abafadas. Nós, com o desgaste da nossa imagem, contribuímos para que algo tenha melhorado nas selecções.

Conhece bem o futebol africano. Como define a actual selecção de Marrocos?

Está entre as melhores africanas e percebe-se o potencial dos jogadores olhando para os clubes onde jogam. É uma equipa de raiz técnica, com uma agressividade e uma dinâmica que a torna difícil. Há fases em que perdem a coesão, porque atingiram um nível africano alto e quando as coisas não correm bem, o povo não perdoa e a instabilidade instala-se.

Que marcas vai deixar a derrota com o Irão?

Estas equipas são tão hábeis como mentalmente alteráveis. Nestes países vive-se o futebol como se não houvesse amanhã e isso será uma enorme pressão. Perderam um jogo que esperavam vencer... Imagino aquilo que criará.

O favoritismo do lado de Portugal não atenua a pressão?

Não me parece que a razoabilidade chegue aí... A exigência é a mesma. Jogaram melhor contra o Irão, mas revelaram fragilidades defensivas acentuadas que o trajecto de qualificação não faria prever. É estranho, tendo um treinador francês experiente, observar-se tão pouca consistência e harmonia defensivas.

E como estará Portugal depois do empate com a Espanha?

O resultado foi excelente face aquilo que se fez. Na primeira parte a equipa esteve melhor e o jogo foi repartido, na segunda Portugal foi subjugado e incapaz de fazer três passes seguidos. Isso não é só qualidade alheia. É também incapacidade própria. A qualidade técnica da nossa equipa exige muito mais. É claro que a Espanha domina os seus adversários, mas quando se ganha a bola tem que se a manter. E Portugal consegui-o muito raramente.

Cristiano Ronaldo voltou a ser decisivo...

O Cristiano esteve ao seu nível. Do pouco fez muito, com muita qualidade. Tanto a marcar, como a servir. E depois decide. Teve um controlo técnico e mental incrível.  

Esta exibição pode libertá-lo para um grande campeonato?

Ele não precisa de ganhar confiança. A seguir ao hino de Portugal, o único que sorriu foi ele. Um sorriso de confiança. Claro que marcar três golos a uma das melhores equipas do mundo, ao país onde ele joga com tudo o que anda à volta dele, acrescenta, se ainda é possível, ainda mais confiança. Espero um Mundial incrível para ele.

Daqui a quatro anos é possível ver Cabo Verde no Mundial?

Não há quem não fale disso em Cabo Verde. Seria um marco um país tão pequeno, mas tão fervoroso pela sua selecção, chegar a um Mundial. Há qualidade e há um trabalho de formação e de melhoria das condições, mesmo num país com dificuldades. A parte humana é fundamental e o talento existe. É um objectivo.

Tem feito a sua carreira no estrangeiro. O que falta para trabalhar em Portugal?

É uma questão de modas, de ligações entre clubes e agentes, de treinadores não serem diplomados e treinarem - nada contra os treinadores, que têm é que aproveitar. As renovações passam sempre pelos mesmos. Vou trabalhando onde é possível e onde quero.

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