"Portugal pode ser um canário numa mina de carvão"

Mark Beighley sabe como funcionam os incêndios e qual a melhor forma de os enfrentar. Acrescentar helicópteros e aviões "é uma solução politicamente sexy” e uma "armadilha", alerta este especialista norte-americano em fogos.

Foto
"A população portuguesa, como um todo, não se vê a si própria como o problema, apesar de serem da sua responsabilidade entre 98% e 99,5% das ignições anuais" Paulo Pimenta

Desde 2009 que vem a alertar para o aumento drástico de incêndios em Portugal. Mark Beighley, ex-director do Gabinete de Incêndios Florestais dos EUA, defende que os resultados da nova estratégia de combate aos fogos vão demorar décadas a surgir e apela à mudança de comportamentos dos portugueses.

Um ano após os incêndios, crê que Portugal está mais bem preparado para enfrentar novas catástrofes?
Sim. Os graves incêndios de 2003 e 2005 foram uma “chamada de atenção” para o crescente potencial de danos causados por incêndios em Portugal. Estão a ser feitos esforços para que haja melhorias substanciais nas três áreas de redução de ignições, remoção de materiais inflamáveis perigosos e meios de combate aos incêndios, mas os resultados podem demorar. E, dada a estrutura portuguesa da propriedade privada de terrenos e da descentralização da gestão de grande parte das áreas florestais, mesmo resultados modestos na remoção de materiais inflamáveis perigosos podem ser difíceis de alcançar. É provável que passem muitos anos até que seja possível aplicar completamente e colher os benefícios de um programa tão agressivo de mudanças que levem a uma redução do risco de incêndios.

Numa intervenção que fez em Lisboa, disse que “o problema são os portugueses”. Pode explicar o que quis dizer? É uma afirmação um pouco polémica, não lhe parece?
Polémica? Talvez, mas creio que “dramática” seria uma melhor descrição, e digo-lhe porquê: a população portuguesa, como um todo, não se vê a si própria como o problema, apesar de serem da sua responsabilidade entre 98% e 99,5% das ignições anuais. Ao apontar a população portuguesa como o problema, estou a referir-me a todas as actividades humanas que causam fogos indesejáveis, sejam industriais, governamentais, agrícolas, florestais, criminais, acidentais, intencionais, etc. Os portugueses são também largamente responsáveis pelas condições perigosamente inflamáveis das florestas, devido aos vastos oceanos de monoculturas de eucaliptos e pinheiros sem qualquer gestão, ao abandono das pequenas parcelas agrícolas que antes eram bem administradas e que agora estão repletas de invasores inflamáveis, e a uma mentalidade geral de “longe da vista, longe do coração” da população predominantemente urbana e suburbana.
Como captar a atenção das pessoas durante tempo suficiente para que nos possamos focar em soluções sustentáveis? Será com declarações polémicas que funcionem como uma bofetada na cara? Espero bem que sim, porque nada parece ter funcionado na última década. Mas eu digo sempre outra frase a seguir a essa.

Foto
"O combate aos fogos rurais e florestais é como o futebol. Se só jogarmos à defesa, o melhor resultado que podemos alcançar é um empate a zero" Daniel Rocha

Sim, também afirma que os portugueses são a solução. O que podem fazer as pessoas?
Participar! Tornarem-se parte da solução. Estarem conscientes das suas acções e do impacto que estas têm para o risco de incêndio ao seu redor. Se fumam, terem sempre um cinzeiro ou outro recipiente seguro para deitarem fora os cigarros. Se fazem queimadas, certificarem-se de que têm as autorizações necessárias, o equipamento e a ajuda adequados e de que as condições climatéricas são apropriadas. Se virem um incêndio ou uma queimada que pareça arriscada ou suspeita, informarem as autoridades para que a situação possa ser avaliada por um profissional. Se atearem um fogo para se aquecerem ou cozinharem numa zona de obras, terem a certeza absoluta de que está extinto antes de se irem embora. Nos dias muito quentes e secos, nunca conduzirem ou estacionarem os veículos em zonas em que a relva seca entre em contacto com as partes quentes dos sistemas de escape. Ao usarem máquinas de soldadura ou maçaricos no exterior, certificarem-se de que as faíscas ou outros elementos quentes não caem sobre materiais inflamáveis. Manterem as distâncias necessárias de materiais inflamáveis à volta de edifícios, linhas de alta tensão e sistemas rodoviários. 

No início dos anos 2000, previu que Portugal teria uma temporada com aproximadamente 500 mil hectares de área ardida. Agora fala em mais de 750 mil hectares. Estamos perto de chegar a esse novo patamar?
A questão importante é saber que condições podem causar incêndios que consumam 600-750 mil hectares num ano. Diria que nos próximos anos não é provável, porque a grande extensão de área ardida em 2017 vai providenciar uma barreira temporária para a propagação de grandes incêndios na região centro. No entanto, nas próximas décadas a vegetação vai voltar às áreas ardidas e, sem uma intervenção séria, será provavelmente ainda mais inflamável e susceptível à propagação de incêndios ainda maiores. Os extensos danos dos fogos de 2017, que afectaram paisagens inteiras, originam ainda aquilo a que se chama “substituição uniforme” — a vegetação que nasce é do mesmo tipo e idade, o que faz com que seja menos resistente a futuras secas e danos provocados por insectos ou doenças, o que consequentemente acelerará o risco crescente de incêndio.

Algumas pessoas pensam que este Verão será mais tranquilo devido à extensão dos fogos de 2017, mas não partilha dessa opinião. 
Claro que a maior parte da área ardida em 2017 não apresenta um risco para este ano. Contudo, é preciso lembrar que a maior parte da área classificada como de risco médio, alto ou muito alto não ardeu em 2017. Podemos identificar os três principais factores e fazer as contas. Combustível: de acordo com um documento recentemente divulgado pelo Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa e pelo Instituto Superior de Agronomia, existem em Portugal 175 mil hectares com uma alta probabilidade de arderem em 2018. Ignições: acabou de ser divulgado que em Maio de 2018 Portugal teve o triplo das ignições que ocorreram em Maio de 2017, bem como mais mil hectares ardidos. Clima: é um pouco mais complicado de analisar, mas é sabido que os efeitos de secas severas, como aconteceu em Portugal no ano passado, tendem a continuar a ter um impacto negativo na vegetação durante o ano seguinte, mesmo que a precipitação volta ao normal.

Portugal é um caso de estudo relativamente às alterações climáticas?
Devido à sua localização geográfica no Sudoeste da Península Ibérica e banhado pelo oceano Atlântico, onde os efeitos da crescente actividade de furacões podem ter um impacto cada vez maior no clima, e muito perto do deserto do Sara, fonte de massas de ar potencialmente muito quentes e secas, Portugal pode ser um “canário numa mina de carvão” relativamente aos efeitos das mudanças climáticas sobre os incêndios no Sul da Europa. Mas deve ser referido que o resto do Sul da Europa enfrenta os mesmos riscos crescentes. Numa de muitas conversas com especialistas em gestão de incêndios e ecologia florestal, foi-me confidenciado que até as florestas do Sul da Alemanha estão cada vez em maior perigo.

O que é mais problemático em Portugal: a prevenção ou o combate aos incêndios?
Essa é fácil: a prevenção é consideravelmente mais problemática.

Foto
"É preciso lembrar que a maior parte da área classificada como de risco médio, alto ou muito alto não ardeu em 2017" Adriano Miranda

Porquê?
Sempre que este problema foi abordado no passado, pensou-se sobretudo numa solução de combate aos incêndios, não foi? O combate aos incêndios requer apenas mais dinheiro para melhorar os meios e mais experiência para melhorar a competência e a eficácia. E há muitas maneiras de providenciar esses meios. Acrescentar helicópteros e aviões é uma solução rápida e politicamente sexy. Injectar simplesmente mais dinheiro no combate aos incêndios é uma armadilha em que a maior parte dos países cai. E, mais tarde ou mais cedo, quase sempre falha.
Em Portugal, uma prevenção eficaz vai precisar, em alguns casos, de uma mudança na cultura. O fogo faz parte da paisagem agrária rural há centenas de anos. 

Os nossos bombeiros estão bem preparados? Como podem fazer um melhor trabalho?
Estão preparados sim — mas para quê? Os bombeiros estão bem preparados para combaterem fogos em edifícios ou em veículos, fogos que podem “cercar e afogar” com veículos e mangueiras. Estão muito menos bem preparados para lidar com fogos florestais. Este problema tornou-se evidente em 2003, quando os bombeiros locais gastaram todos os seus meios e esforços na defesa de casas e aldeias, basicamente empurrando o fogo para fora da sua área de responsabilidade de protecção. O fogo espalhava-se então para a aldeia seguinte, onde se usava a mesma táctica... e depois para a seguinte e assim sucessivamente, até que ocorresse uma mudança significativa no clima.
O combate aos fogos rurais e florestais é como o futebol. Se só jogarmos à defesa, o melhor resultado que podemos alcançar é um empate a zero. No caso do combate aos incêndios, a defesa é a protecção da vida e da propriedade. O ataque é a construção de uma linha de fogo ou o reforço de uma barreira para impedir a propagação do fogo. Portugal precisa de apostar numa equipa nacional de combate aos incêndios que tenha uma capacidade ofensiva equilibrada que iguale a força da sua capacidade defensiva. Isto significa ter meteorologistas especializados que prevejam mudanças no vento, temperatura e humidade ao nível do solo; ter especialistas técnicos em incêndios que, de acordo com essas previsões, consigam escolher os melhores locais para os bombeiros conseguirem evitar que o fogo se espalhe; e ter equipas especializadas, com tractores e bulldozers, que construam linhas de fogo e queimem os combustíveis nesses locais vantajosos antes que o fogo lá chegue.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários