Como se fazem novas todas as coisas

Há um ano, o incêndio de Pedrógão Grande deixou-nos em choque. A tragédia uniu-nos no luto, mas dividiu-nos o coração.

Fazia um calor imenso, há um ano. Era sábado e o sol, mesmo assim, convidava ao descanso. As capas dos jornais faziam o luto de Helmut Kohl, sem grandes referências a qualquer alerta. 

A nós, que temos as notícias sempre à mão, já passava das nove da noite quando nos apareceram os primeiros alertas, dizendo que a situação em Pedrógão Grande era incontrolável. E passava das 23h quando esse descontrolo ganhou uma imagem, trágica: um morto, sete mortos, nove mortes. Muitas mais mortes, passados minutos, já com um presidente a caminho, quando a madrugava escureceu de luto. 

De fim-de-semana, eu próprio só acordei para a dimensão da tragédia com uma mensagem da Liliana Valente, a oferecer-se para ir para a redacção. E mais ainda quando soube que o Adriano Miranda se tinha posto à estrada, sem pré-aviso, a caminho do inferno que se punha à nossa frente. Trabalhámos muitas horas depois disso — nós na redacção, a Liliana, o Adriano e outros de nós por lá, a chorar “a noite mais longa, a noite da guerra, a manhã mais cruel, a manhã da tristeza” — como ele nos descreveu agora, dolorosamente.

Há um ano, o incêndio de Pedrógão Grande deixou-nos em choque. A tragédia uniu-nos no luto, mas dividiu-nos o coração. 

Dividiu-nos por dentro, porque uma parte de nós queria a paz de saber que tudo tinha sido feito, que só mesmo uma desgraça divina nos podia ter tirado tantas vidas, 65. 

Dividiu-nos por dentro porque a outra parte de nós queria gritar uma pergunta: “Porquê?” Aqui, deste mesmo lugar, gritámos assim: “Todos os anos perguntamos, todos os anos nos respondem que agora vai ser diferente. Nunca é. Em Pedrógão Grande, voltou o inferno. Mas porquê?”

Durante meses, as perguntas repetiram-se. Repetiram-se, já em uníssono, quando a tragédia voltou, no meio do mês de Outubro. Foi quando as respostas começaram a chegar que fizemos a autópsia e terminámos o luto — que começámos a tirar lições.

De há um ano para cá, alguma coisa mudou. Ficámos mais conscientes, sempre alerta. Ficámos mais exigentes e mais responsáveis. Seguimos, de algum modo, em frente.

Em Pedrógão, há uma pele que se regenera, casas que se reconstroem e rotinas que se retomam. Um mundo novo que começa, onde é preciso aprender a voltar a viver. A Liliana Valente, que passou todos estes meses por lá, fez com a Sibila Lind um documentário sobre uma comunidade que é a prova viva disso. Não por acaso, chama-se Eis Que Fazem Novas Todas as Coisas. É a nossa melhor homenagem a quem resiste e virou a página por lá. Amanhã, continuaremos com as perguntas. E a olhar por eles.

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