A insustentável leveza da linguagem corporal

Desde que Donald Trump chegou à Casa Branca, um dos exercícios mais praticados nas redes sociais e nos media tem sido a análise ao pormenor dos braços, das pernas, dos olhos, das mãos, do cabelo, da curva dos ombros, de tudo e de nada, nas fotografias em que ele aparece.

Na fotografia, o Presidente dos Estados Unidos está sentado, com os braços cruzados e um sorriso zombeteiro nos lábios, como aquelas crianças traquinas que são arrastadas pelas orelhas para um sermão da directora da escola, mas que mesmo assim fazem questão de levar nos bolsos dois sacos, daqueles grandes, cheios de petulância.

De pé, olhando-o nos olhos, está a chanceler alemã. Assim como está, com as mãos em cima da mesa e inclinada em direcção a Donald Trump, dir-se-ia que Angela Merkel é a directora da escola e que daí a pouco vai mostrar à criança traquina que tem à sua frente o que é que ela pode fazer com os dois sacos, daqueles grandes, cheios de petulância.

Se havia dúvidas sobre os contornos da história que aquela fotografia nos queria contar, uma multidão de curiosos, autopromovidos a especialistas em linguagem corporal, apressaram-se a desfazê-las com o incentivo daquelas certezas absolutas que só as redes sociais podem dar. E com a bênção dos media, que muitas vezes pegam em comentários no Twitter sobre uma fotografia sem contexto e fazem disso notícia.

“Meu Deus, este G7 está a produzir uma excelente série de fotografias. Será que Angela Merkel pôs Trump no banco dos meninos mal-comportados?”, perguntou no Twitter John O’Brennan, professor de Políticas Europeias na Universidade Maynooth, na Irlanda. O comentário rendeu quase dois mil retweets e mais de 11 mil likes.

Olhando para aquela fotografia, ficava claro que Angela Merkel, a directora da escola, estava com uma vontade quase incontrolável de passar um raspanete a Donald Trump, o aluno mal-comportado.

Foto
Bundesregierung/Jesco Denzel/REUTERS

Poucas horas depois apareceram outras fotografias da mesma cena, tiradas de posições diferentes. Afinal, Merkel já não parecia estar com uma vontade quase incontrolável de passar um raspanete a Donald Trump, que também já não parecia ser um aluno mal-comportado.

Olhando bem, talvez Merkel estivesse apenas a preparar-se para ler melhor uns papéis que lhe puseram em cima da mesa, e Trump podia estar apenas cansado.

A história foi a mesma no ano passado, quando Donald Trump visitou o Vaticano. Então, o Papa Francisco foi apanhado numa fotografia com um olhar desgostoso, quase desesperado, a um palmo de distância de um radiante Presidente norte-americano.

É claro que só havia uma leitura, disseram os mesmos curiosos autopromovidos a especialistas em linguagem corporal: os outros líderes mundiais até podem fingir bem, mas o Papa falou em nome do mundo civilizado mesmo sem abrir a boca.

Pouco tempo depois não faltavam fotografias que mostravam Trump e o Papa a sorrir, com uma interacção muito mais em linha com o que acontece em qualquer encontro oficial no Vaticano. Mas já era tarde para travar as certezas absolutas. Quem viu a fotografia do Papa desgostoso, já não quis ver a fotografia do Papa afável. E vice-versa.

Desde que Donald Trump chegou à Casa Branca, um dos exercícios mais praticados nas redes sociais e nos media tem sido a análise ao pormenor dos braços, das pernas, dos olhos, das mãos, do cabelo, da curva dos ombros, de tudo e de nada, nas fotografias em que ele aparece.

Se quisermos saber qual é a opinião de alguém sobre Donald Trump e sobre tudo o que ele representa, basta mostrar-lhe uma fotografia de uma cimeira ou de um encontro com o Papa e esperar pela sentença.

Pouco interessa que essa forma de olhar para o mundo, a preto e branco e fechada numa bolha de certezas absolutas, tenha contribuído para a eleição de Donald Trump.

Afinal, é preciso ir repetindo que uma imagem vale por mil palavras, especialmente agora que as palavras estão ao preço da chuva.

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