"A distribuição de donativos no início foi um caos"

Investigador e perito no acompanhamento de vítimas em situações trágicas, José Manuel Mendes, avisa que "pouco se percebe" sobre como estão a ser aplicadas as verbas

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Adriano Miranda

José Manuel Mendes é membro do Observatório do Risco do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e é nessa qualidade que tem vindo a acompanhar todo o processo de reconstrução das comunidades afectadas pelos incêndios do Pinhal Interior. 

Como classifica a resposta do Estado aos incêndios de Pedrógão Grande?

Foi rápida. Afinal temos 60% das casas construídas. Em Mariana (Brasil), a barragem rebentou em 2015 e ainda estão todos a viver em hotéis, em fazendas de amigos. Aqui, e a partir do momento em que o Estado foi fortemente interpelado pela comunicação social, que foi exemplar, e depois pela reprimenda institucional do Presidente da República, o Estado respondeu. 

E a forma como os trabalhos que se desenvolveram no terreno?

Falhou muito no início. Foi tudo muito ad hoc. Andavam pessoas para trás e para a frente a distribuir donativos, foi um caos. Houve mais de 13 milhões de donativos, dos quais o REVITA, que foi o órgão criado pelo Estado para gerir este processo, só tem responsabilidade directa em quatro milhões. Esta profusão de entidades no terreno é complicada. Não se chega a perceber porque é que é assim, e como é que tudo correu. No final faz-se uma auditoria para concluir que o dinheiro foi aplicado naquela população, e é obvia que se uma instituição como a Gulbenkian faz uma doação de 500 mil euros pode aplicá-la onde quiser, mas não se percebe o porquê de tanta gente no terreno. E o pouco que se percebe não pode deixar ninguém tranquilo.

A que se refere?

Os cidadãos exigiram que não fosse o Estado a fazer a gestão do dinheiro. Os doadores disseram-no explicitamente. Isso tem de nos fazer pensar um pouco. Pode ser muita coisa, não há um inquérito sobre isso. Eu diria que são pessoas que não se identificam com a linha política do Estado ou com a solução governativa que existe actualmente. Mas o Estado pode ser auditado, questionado. 

Foi anunciado que estão todos a aplicar os mesmos critérios e metodologia, definida pelo Revita.
Mas tudo é confuso. Qual foi a voz das pessoas neste processo de reconstrução? Puderam participar nas decisões? Foram ouvidas? Parece-me que todo o processo foi de cima para baixo, imposto. No terreno as pessoas sentem o facto de estarem dependentes de uma entidade de que podem não perfilhar os ideais e serem penalizados por isso. Isso acaba por reproduzir o poder de quem está à frente dessas instituições e dessas autarquias. Parece óbvio que depois tem de votar naquela cor. Acho curioso que depois das eleições ficou tudo na mesma. Normalmente, após estas tragédias, quem está no poder sai penalizado. Aqui não. O presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, é reeleito, porque é também quem mais contesta os critérios. E ele é o único que está no Revita!

O que fica para aprendizagem futura?
Não pode haver esta profusão de entidades. Tem de haver uma pessoa nomeada, como houve para a comissão de indemnizações, a Provedora de Justiça. Há muitas entidades que podem fazer a gestão deste processo. Uma secção do Tribunal de Contas, por exemplo. É importante pensar-se que as pessoas têm de manter a dignidade. E como podem fazê-lo se estão a ser mandadas por toda a gente? Quem tinha capacidade de resistir a isto, como alguns estrangeiros, resistiu.

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