Um fim-de-semana nas nuvens e a ver estrelas

O festival gastronómico The Art of Flavours foi apenas o pretexto. Passámos três dias na ilha a tentar escapar por entre os pingos da chuva, a comer como se não houvesse amanhã, a ver baleias e golfinhos e ainda a vencer medos com asas.

Cenário De Montagem, Alpes
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Pedro Cunha
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Os nove chefs que participaram no The Art of Flavours Oito Productions

Não há direito: é a segunda noite consecutiva que nos levantamos pelas 5h. Querem-nos na recepção às 5h45, prontos para um café e um croissant rápidos, e uma banana da Madeira no fim, que o pequeno-almoço a sério chegará daqui a umas duas horas e será inesquecível. Não nos enganam.

Eis-nos, então, às 6h em ponto a deixar o Belmond Reid’s Palace, no Funchal, e a entrar no jipe que nos há-de levar até ao Pico do Areeiro para um pequeno-almoço nas nuvens. André é o nosso motorista e guia nesta longa manhã. Enquanto subimos pela montanha faz-se valer da sua experiência de ilhéu e vai lançando prognósticos. “Talvez tenhamos sorte, talvez.” Isto quer dizer que o nevoeiro cerrado que vamos vencendo talvez se transforme em céu limpo quando chegarmos aos 1810 metros (aquele que é o terceiro ponto mais alto da ilha eleva-se aos 1818, assinalados pelo marco geodésico, mas nós ficaremos oito metros abaixo). André sabe que o sol há-de nascer às 7h, e tem tudo controlado ao minuto.

Pára o jipe e pede-nos para sairmos. Está um frio cortante, daquele que se entranha até aos ossos. Para ajudar à festa, sopra um vento fresquinho, vale que só a espaços. Acercamo-nos de um miradouro que há-de dar vistas memoráveis, acreditamos, mas para já só assistimos a uma dança de nuvens espessas. Pelo meio delas, de vez em quando rompem umas cores rosadas, tímidas. Cinco minutos, dez, nada. Para aligeirar a frustração, André saca do telemóvel e mostra-nos um nascer do sol de postal. “Era suposto ser assim”, ri-se.

Haja boa disposição, que, apesar do frio e do nevoeiro, o cenário consegue ser grandioso. Daqui temos noção do quão verde é esta ilha e percebemos que a chuvinha que agora começa a cair em muito contribui para isso. Descemos mais uns metros e paramos o jipe numa clareira. Já vemos uma mesa montada, cadeiras forradas a branco, e funcionários do Reid’s a dispor travessas de queijo e presunto, pães e croissants, pastéis de nata e queijadas da Madeira. E a chuva continua a cair, agora com mais convicção. Saímos, servem-nos um copo de champanhe Pommery, mas logo invertemos a marcha e procuramos, de novo, refúgio no jipe. Imperturbáveis, os funcionários do hotel trazem-nos chá ou café, doces e salgados e sorrisos divertidos. Confirma-se: este pequeno-almoço será inesquecível. 

É justamente essa a filosofia do Belmond: fazer com que os seus hóspedes vivam experiências únicas, dentro e fora das paredes do hotel. Se as coisas tivessem corrido como previsto, teríamos tido um pequeno-almoço num quadro idílico que dificilmente esqueceríamos; assim ganhámos uma história bem-humorada para contar. E que também não esqueceremos.

Depois disto ainda vamos num passeio off-road pelas entranhas da ilha, mas na verdade viemos à Madeira para participar no primeiro festival The Art of Flavours, organizado pelo Reid’s. A convite do chef Luís Pestana, uma estrela Michelin ao serviço do William, um dos restaurantes do icónico hotel do Funchal, sete outros cozinheiros estrelados mostraram, em duas noites consecutivas, as artes da sua cozinha.

Na primeira noite, sábado, participaram numa “Food Party” que decorreu junto à piscina do hotel, num espaço propositadamente decorado para o efeito, a vista de sempre para a baía do Funchal. Entre os convidados de Luís Pestana, que para esta festa que se quis descontraída escolheu servir vieiras, encontravam-se Ricardo Costa e Michel van der Kroft, ambos distinguidos com duas estrelas no Guia Michelin: o primeiro no Hotel The Yeatman, em Gaia; o segundo no ‘t Nonnetje, em Harderwijk, na Holanda. A proposta de van der Kroft recaiu num ravioli com queijo Serra da Estrela, um prato que serve no seu restaurante e que é uma homenagem à sua mulher, a portuguesa Maria do Céu. A avaliar pelas pequenas filas que se formaram junto ao balcão onde Michel cozinhava, este prato é realmente uma aposta ganha. Ricardo Costa, por seu turno, preferiu servir na Madeira um prato de chocos.

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Davide Bisetto, uma estrela no restaurante Oro, no Belmond Cipriani, em Veneza, apostou num risotto de robalo, enquanto Joachim Koerper, do Eleven, em Lisboa, apresentou cavala. Pedro Lemos, do restaurante homónimo, no Porto, levou vaca velha, uma carne de sabor bem marcado que marinou durante uma semana e cozeu 24 horas. Já Vítor Matos (Antiqvvm, Porto) escolheu servir atum, um dos produtos estrela da ilha da Madeira. Sergi Arola (LAB by Sergi Arola, Penha Longa Resort, Sintra) preparou raviolis com cavala. 

A oferta gastronómica desta primeira noite do festival The Art of Flavours foi complementada por uma selecção alargada de vinhos e por propostas mais doces, que ficaram a cargo de Pedro Campas, chef pasteleiro do Reid’s. Foi também aqui que descobrimos os chocolates artesanais da Uau Cacau, produzidos por Tony Fernandes a partir de produtos típicos da Madeira, como o vinho, o mel de cana, a banana ou o maracujá. Os bombons de Tony foram para nós a pitanga no topo do bolo.

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Vítor Matos a preparar o atum que serviu na Food Party Oito Productions

De teleférico, de olhos bem fechados

Não há direito: só temos agenda para as 11h30 e despertamos pelas 7h. Descemos ao bar da piscina para o pequeno-almoço pouco depois de as portas se abrirem, às 7h30. É domingo, 10 de Junho, e a manhã está radiosa. Enquanto nos perdemos entre frutas de cores vivas, ovos acabados de fazer e crepes de ananás e coco, o sol envergonha-se e cede lugar, outra vez, a umas nuvens chatas e cinzentas. O apelo do mar, lá em baixo, e da piscina infinita atenua-se e pomos pés ao caminho, até ao centro do Funchal. Passa pouco das 9h, a cidade ainda está a acordar. A caminhada dura 15 minutos, que quase passam despercebidos se formos deitando o olho à Quinta Vigia, residência oficial do presidente do Governo Regional, ao Parque de Santo António, à marina, até nos embrenharmos nas ruelas da zona velha para descobrirmos o projecto de arte urbana  “Arte de Portas Abertas”, que arrancou em 2010. De regresso ao hotel, ainda paramos para observar de relance as cerimónias de comemoração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.

Temos agora uma curta viagem de barco até à Fajã dos Padres, que, no entanto, se torna mais longa porque esta é uma viagem com brinde: quando menos esperávamos, à nossa direita, o mergulho elegante de uma baleia. E daqui a pouco, agora à nossa esquerda, outra vez. É um momento que tem tanto de fugaz como de emocionante. “É uma cria de uma baleia-de-Bryde e provavelmente está perdida da mãe”, ouvimos da tripulação. É também por isso, para facilitar o encontro da cria com a mãe, que seguimos logo viagem. Desta vez, porém, já temos compromissos: um grupo de golfinhos anda aqui por perto e vamos em busca deles. Não tarda a que se deixem ver: mergulham à nossa frente, ao lado, atrás do barco. “Estão a brincar connosco.” Quem ficar indiferente ao avistamento destes animais, que atire a primeira pedra.

Chegamos de coração cheio à Fajã dos Padres, um lugar inóspito na costa sul da Madeira que só se atinge de barco, por um elevador que é um arranhão ocre na rocha e que vemos ao longe e, mais recentemente, através de um teleférico que vence nuns três minutos (uma eternidade) o desnível assustador para quem tem vertigens (é o caso).

A fajã tem este nome porque durante mais de 150 anos pertenceu a padres jesuítas, que aqui viveram e aos quais se deve a introdução do vinho Malvasia. Está agora aberta ao turismo e é um lugar especial. Quem cá chega recebe o enquadramento histórico, observa as plantações da quinta gerida pela família Vilhena Mendonça e, no fim, pode provar e ouvir as histórias do vinho da Madeira Malvasia Fajã dos Padres contadas por Mário Jardim Fernandes, um dos proprietários.

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A Fajã dos Padres é um lugar inóspito aonde se chega apenas de barco, de elevador ou de teleférico

É ele quem nos recebe na adega, nos serve um copo de 2005 directamente da barrica e nos conta que a produção é curta — o ano melhor foi o de 2006, “com 3000 e tal litros” — e que continua a fazer este vinho “para ir alimentando a alma da fajã”. Durante anos, pensou-se que a Malvasia tinha desaparecido da fajã, na sequência da grave crise vinícola que afectou a ilha em meados do século XIX motivada pela filoxera. Algures nos anos 1980, um funcionário da quinta encontrou um pé, confirmou-se que era de Malvasia e a produção renasceu. É esta alma que Mário quer continuar a alimentar.

Almoçamos com vista para o mar, lapas grelhadas e bife de atum, acompanhados por Terras do Avô branco. Já sabíamos que teríamos de subir de teleférico, mas estávamos em negação. É chegada a hora. Apetece resistir, mas dos fracos não reza a história. De teleférico, seja, mas de olhos bem fechados. Só os abrimos lá em cima, quando nos sentimos com os pés bem assentes em terra. Dizem-nos que, enquanto se sobe, a vista é linda e não temos por que duvidar, mas os medos, esses, vencem-se um de cada vez.

Um desfile de estrelas

São 17h50, falta pouco mais de hora e meia para o segundo momento gastronómico do The Art of Flavours. Hoje há jantar com nove pratos no William (“Stars Dinner”) e a azáfama na cozinha é grande. Está tudo em velocidade de cruzeiro, mas ainda assim reina a boa disposição. O anfitrião Luís Pestana faz uma pausa e explica-nos que, para além de ter feito os convites aos cozinheiros, aqui o seu papel é mais de coordenação, para que nada falhe e não haja muita repetição de ingredientes no menu que vai ser servido aos clientes. “Este ciclo pretende dar oportunidade às pessoas da Madeira de experimentarem a cozinha de grandes chefs. A ideia é que cada chef traga um bocadinho da sua identidade, que consiga transmitir a quem nos visita um bocadinho da sua essência, da sua forma de estar na cozinha.” Para Luís Pestana fica a responsabilidade de “honrar os produtos madeirenses” e de “tentar harmonizar e conciliar os diferentes pratos” de cada um dos cozinheiros. Depois, é só deixar as estrelas brilhar.

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Luís Pestana, chef do William, a terminar o prato que apresentou no Stars Dinner Oito productions

Das amplas janelas do William ainda se olha para o Funchal à luz do dia quando começa o desfile. É com o berbigão “Nitro”, de Ricardo Costa, que abre a refeição, que há-de prolongar-se por mais de três horas. Segue-se a Saltimbocca 2018 de Joachim Koerper, o cremoso de batata com caviar e foie gras de Sergi Arola, um prato simples mas surpreendente: suave a batata, a contrastar com o sabor marcante do foie, o caviar a balançar o conjunto.

Da Islândia veio o lagostim que Michel van der Kroft serviu com jalapeno em três texturas (gelado, mousse e creme) e vinagrete de tomate arbóreo. Lagostim pleno de sabor, gelado muito marcado, mas as duas outras texturas a casarem lindamente com a frescura do bicho e o toque doce do tamarilho. Seguiu-se o ravioli cacio e especiarias, criação de Davide Bisetto, e logo depois o atum rabilho com cogumelos e wasabi de Pedro Lemos.

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O prato de Michel van der Kroft Oito Productions

As carnes ficaram a cargo de Vítor Matos, que preparou um “Bosque” composto por pombo (suculento e repleto de sabor), cevadinha e molho de vinho, e de Luís Pestana, que escolheu levar para a mesa wagyu com trufa, foie gras e vinho Madeira. A carne estava perfeita, perfeita e, na opinião de muitos comensais, fechou a noite em beleza.

Pedro Campas apresentou a sobremesa “Sabores com tradição”, onde pôs em destaque produtos da ilha como o bolo de mel e o maracujá, e todos os pratos que desfilaram pela passerelle do William foram harmonizados com vinhos Niepoort.

O The Art of Flavours, que foi marcado para os dias em que decorreu pela primeira vez o Festival do Atlântico — espectáculo piromusical que acontece durante as noites de quatro sábados deste mês na baía do Funchal — já tem data marcada para 2019: 14, 15 e 15 de Junho. Anote na agenda.

A Fugas viajou a convite do Belmond Reid’s Palace

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