São Petersburgo: do veludo ao chumbo

Um dos palcos do Mundial de Futebol que está a decorrer, São Petersburgo tem uma história recente mas intensa. Entre o luxo dos czares e a revolução de 1917 ou as privações da II Guerra, a cidade mudou de nome várias vezes e perdeu o estatuto de capital da Rússia, mas manteve sempre a sua identidade.

Copa do Mundo de 2018, São Petersburgo
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Museu Erarta Luís Villalobos

Panelas e granadas de mão não são dois produtos que se associem a Carl Fabergé, o mestre joalheiro que executou obras-primas de joalharia para os Romanov. No entanto, os produtos feitos pelas suas oficinas para a frente de combate durante a guerra de 1914-1918 fazem parte de uma exposição que mostra a sua faceta desconhecida, “Fabergé na Grande Guerra”, numa sala imediatamente ao lado de outra que contém jóias como um dos seus famosos ovos imperiais, combinações perfeitas de minúcia e extrema riqueza (neste aspecto, vale bem a pena visitar o museu Fabergé, dedicado à alta joalharia russa e situado no centro da cidade).

Aqui, em apenas duas salas de um dos edifícios que compõem o Hermitage - um dos maiores e mais famosos museus do mundo -, em frente ao Palácio de Inverno, São Petersburgo revela a sua identidade: a de uma cidade marcada tanto pelo luxo imperial como pelas guerras e revoluções.

Esta é, aliás, uma urbe criada à força, desejada e concretizada por Pedro I, o Grande, que transformou uma zona pantanosa na capital do império russo. A ideia era ter um ponto de acesso ao mar a ocidente, e a sua concretização, que conduziu à morte de um elevado número de servos (num regime semelhante ao da escravidão, ninguém os contou) e prisioneiros, aconteceu em plena guerra com os suecos para dominar a região. Em 1712, ainda São Petersburgo não estava pronta, a capital mudava-se de Moscovo para as margens do golfo da Finlândia, abrindo-se uma porta para a Europa.

A partir deste momento nasceriam grandiosos palácios e edifícios cuja função era terem apartamentos para alugar (a posse não era algo comum). Estes espalham-se pela cidade que, plana e em tons suaves de pastel, convida a andar a pé pelo seu centro histórico (esta é uma proposta menos válida no Inverno, onde o desafio são a neve e as temperaturas negativas - compensado, dizem os locais, com preços mais baratos e menos turistas), sempre acompanhado pela água.

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Catedral do Sangue Derramado Getty Images

Aqui, os números são sempre impressionantes: com os seus múltiplos canais e rios, onde se destaca o Neva, a cidade tem mais de 300 pontes que agregam várias ilhas, e as suas histórias dividem-se por cerca de 200 museus. Diz-se, e é verdade, que por vezes a cidade faz lembrar Amesterdão ou Veneza – urbes por onde andou D. Pedro I -, mas em momento algum São Petersburgo parece perder a sua própria identidade.

A isso ajuda o facto de não haver grandes construções modernas, em altura, no centro da cidade, que se mantém quase igual ao que era há várias décadas: o gigante energético Gazprom, que ali quis edificar um arranha-céus de 462 metros, acabou por ser remetido para a zona mais periférica, ocupando apenas, em algumas zonas, o canto do olho de quem vagueia por entre os edifícios neoclássicos.

Ponto alto da fé

Por aqui, os pontos mais altos e emblemáticos ainda são ditados pelos antigos símbolos de poder e pela fé, nomeadamente por via da catedral de S. Isaac, que se impõe no espaço visual com a sua cúpula coberta a ouro.

Construído entre 1818 e 1858, o maior templo ortodoxo da cidade acaba por impressionar mais pelo seu interior, amplo e repleto de cores (como as das imagens de ícones religiosos e as das colunas de malaquite da Sibéria e de lápis-lazúli do Afeganistão, junto ao retábulo). Com uma certa influência católica (visível através da presença de um púlpito), a catedral é hoje mais um local de visita do que um local de culto, que se restringe a uma pequena capela. Nada de estranho para um local que chegou a ser um monumento ao ateísmo na época comunista. Pode-se também subir até à cúpula, uma ascensão paga para uma vista alargada e que requer um bilhete distinto.  

Não muito longe está outro local de peregrinação turística, a Catedral do Sangue Derramado, cujo estilo exterior se apresenta bem mais invulgar aos olhos de um europeu ocidental, com o chamado “estilo russo” a revelar a inspiração bizantina. A sua história está ligada a um acto de violência - uma das marcas de água de São Petersburgo -, já que foi ali edificada por ser o local onde o czar Alexandre II (responsável pela abolição da servidão) foi assassinado em 1881. Depois de várias décadas – as do comunismo - de abandono, a igreja, famosa pelos seus mosaicos coloridos, acabou por ser restaurada e reaberta ao público em 1997, mas não presta serviços religiosos.

No que toca aos símbolos do poder, nada melhor do que o Palácio de Inverno, que hoje funciona como ponto central do Hermitage com as suas centenas de salas e milhares de obras de arte e peças de história. Se foi a imperatriz Elisabete Petrovna quem ordenou o lançamento das primeiras pedras do palácio a meio do século XVIII, num estilo barroco, Catarina II, a Grande, impôs um estilo neoclássico nos anos seguintes – seguindo a moda de então - e ao comprar colecções de arte que acabaram por transformar a residência imperial na base do actual museu.

Guardiões do luxo dos czares, os portões com a águia imperial de duas cabeças abriram-se em frente à enorme praça do palácio em Fevereiro de 1917 para albergar o governo provisório formado por personalidades como Kerenski. Poucos meses depois, em Outubro, o edifício foi tomado de assalto pelos bolcheviques liderados por Lenine, com o apoio do cruzador Aurora, num golpe militar que colocou os comunistas no poder e alterou o curso da história mundial. Hoje, o cruzador está ancorado no rio Neva como museu, mesmo lado da Fortaleza de São Pedro e São Paulo, também ela envolvida na revolução (por estes dias de sol, as suas praias fluviais são também um ponto de concentração de locais e ponto de atracção turística).

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Vista sobre a cidade da Catedral de São Isaac Nurphoto

Um conselho dado por locais a quem queira visitar um ponto nevrálgico como o Palácio de Inverno (incluindo a sala do trono, vazia no momento da queda dos Romanov, colocou um ponto final em séculos de monarquia, com Nicolau II na frente oriental) é o de comprar bilhetes antecipadamente. E é preciso ter em conta que o Hermitage é hoje composto por vários edifícios além do Palácio de Inverno, com diversas exposições, temporárias e fixas, e bilhetes correspondentes.

Numa cidade como São Petersburgo, rebaptizada Petrogrado em 1914 para cortar com a influência alemã por causa do conflito mundial, uma avenida facilmente se atravessa na história, como é o caso da Nevski. Aqui estavam lojas nobres da cidade dos czares, e aqui fermentou a revolução de Fevereiro de 1917, com todos os seus mortos. Do topo de edifícios como o da Singer - um monumento de seis pisos à arquitectura Arte Nova -, os polícias de Nicolau II assassinaram várias dezenas de pessoas que se manifestavam contra a fome (numa fase aguda de falta de pão, com temperaturas negativas) e contra a guerra.

Mais tarde enterrados no Campo de Marte, um jardim ao lado do Museu Russo, os cadáveres deram o mote para a mudança de regime, com a adesão dos cossacos e deserção de regimentos (a vingança contra os postos de polícia foi, depois, bastante sangrenta). Percorrer um pouco a pé a Nevski, principal artéria da cidade, será tudo menos uma perda de tempo, entre edifícios centenários, lojas e monumentos (como a catedral de Kazan, construída no início do século XVIII com inspiração na Basílica de São Pedro, e ligada à vitória sobre as tropas de Napoleão). 

Com a ascensão dos bolcheviques veio também o fim da participação na I Guerra, com várias cedências à Alemanha, não sem que antes a cidade perdesse o estatuto de capital: em Fevereiro de 1918, ainda com as negociações com os alemães por finalizar, o exército do Kaiser estava a menos de 200 quilómetros da cidade. Com vontade de marcar um novo ciclo, os bolcheviques mudam a sede do Governo para Moscovo e, poucos anos depois, mudariam também o nome da cidade para Leninegrado, após a morte do seu líder em 1924.

Inimigo às portas

A cidade, que assistiu à guerra civil e ao terror de Estaline, viu depois a sua existência colectiva ligada a outro episódio extremo, o do cerco nazi. Atraído pelas grandes cidades emblemáticas, como Estalinegrado, Hitler enviou as suas tropas para eliminar Leninegrado, centro industrial e cultural. Sem sucesso. Naquele que foi um dos maiores cercos da História (dois anos e meio, entre Setembro de 1941 e Janeiro de 1944), e possivelmente os mais mortífero, estima-se que cerca de 750 mil pessoas (um terço do total) tenham perecido na cidade, a esmagadora maioria de frio e de fome (com relatos de canibalismo, apenas tornados públicos com o fim do comunismo).

Se a Rússia de hoje ainda tem dificuldades em olhar para o período soviético (nomeadamente pelo seu impacto profundo, e falta de distância temporal), a foice e o martelo saem juntas à rua sem quaisquer preconceitos a 9 de Maio, dia da vitória da “grande guerra patriótica” sobre os nazis. Nesse momento, são os símbolos da resistência tenaz ao invasor estrangeiro. Hoje, ainda há sobreviventes desse tempo - tal como há casas partilhadas por várias famílias, uma herança comunitária soviética -, que se recusam a adoptar o regresso da toponímia da cidade para São Petersburgo (a mudança, votada por referendo em 1991, funcionou desta feita para cortar com o passado comunista).

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Palácio Peterhoff Luís Villalobos

Da mesma forma, ainda se sentem os impactos do cerco do exército nazi em dois dos monumentos de referência dos arredores da cidade: Peterhoff, o palácio criado à beira-mar por Pedro, o Grande, e o palácio de Catarina, mulher de Pedro, em Tsarskoe Selo (Pushkin, para o interior), que dividiram entre si as preferências e as estadias de Verão dos czares e da corte.

Localizados a cerca de 30/40 km de São Petersburgo, uma visita a estes dois locais, com os seus amplos espaços verdes (Peterhoff é conhecido como a Versalhes russa) é uma viagem ao mundo da riqueza extrema da corte nos séculos XVIII e XIX, com a filha de Pedro e Catarina, Isabel, conhecida como a “gastadora”, a fazer crescer os edifícios em dimensão e ostentação (com preferência pelo ouro, tendência depois travada por Catarina II, a Grande), com recheio a condizer, entre móveis, quadros, tecidos, candelabros e porcelanas. Logo em 1917, Peterhoff foi transformado em museu, para que todos pudessem vislumbrar o modo de vida faustoso dos mais privilegiados na velha ordem.

Ao passar por salas como a do âmbar, no palácio de Catarina, pode-se ficar mais ou menos deslumbrado com o seu esplendor, mas a divisão de tons amarelos e laranja faz parte de uma história de destruição e criação: nada do que ali está pertence ao tempo dos czares e czarinas. Durante a invasão das tropas alemãs, tanto este palácio como o de Peterhoff foram ocupados e pilhados pelos nazis, incluindo a cobertura original de âmbar que revestia a sala, em mosaicos acompanhados por ouro e pedras preciosas, não obstante ter sido escondida com tapumes de madeira num processo rápido de fuga devido ao rápido avanço das tropas de Hitler (mesmo assim, funcionários conseguiram proteger diversas peças e até materiais como chão de madeira).

Os dois edifícios estavam praticamente destruídos no momento de retirada alemã, pelo que muito do que compõe estes palácios são restaurações posteriores, morosas e dispendiosas (é fácil perceber quais são as partes originais de uma parede revestida a seda, por exemplo, porque essa área tem uma protecção especial). No caso da sala do âmbar do Palácio de Catarina, que ainda hoje tem áreas a serem recuperadas, aquele que era o grande exemplo visual do poder e riqueza dos Romanov – e cujo paradeiro se desconhece, tendo desaparecido juntamente com o domínio nazi – foi mandado replicar em 1982.

Quase vinte anos e 10 milhões de euros depois, coube ao primeiro-ministro Vladimir Putin, em 2003 (ano das comemorações do terceiro centenário de São Petersburgo) inaugurar a nova sala do âmbar com o chanceler alemão Gerhard Schroeder ao seu lado (o cunho alemão impregna toda esta história, já que foi Frederico Guilherme I da Prússia quem ofereceu a primeira versão da divisão de âmbar a Pedro, o Grande).

Já em Peterhoff, uma das salas mostra o momento de refeição, com um conjunto de chá feito porcelana. Embora pareça nunca ter saído daqui, foi um dos lotes saqueados pelos nazis: encontrado em Berlim após a chegada dos russos à capital alemã, em 1944, as chávenas e pratos voltaram para o palácio com mais uma história para contar.

“Os russos estão a chegar”

Berço de nomes da literatura mundial como Pushkin, Gogol ou Dostoyevsky (este tem mesmo um museu, localizado na última casa que alugou), São Petersburgo não ficou parada no tempo, e faz jus ao epíteto de capital cultural da Rússia através do Erarta, um museu privado de arte contemporânea.

Aberto desde 2010, reúne 2800 peças produzidas de 1945 até hoje, de mais de 300 artistas espalhados pelo país (tendo por base um trabalho aturado de pesquisa e viagens em busca dos trabalhos de pintura, escultura e colagem, entre outros).

Aqui, o realismo socialista surge por oposição no caso das obras produzidas durante a época soviética, como resistência ao pensamento pré-formatado. O Recrutamento, de Piotr Gorban (1923-1995), terminado em 1985, é tudo menos um hino ao homem soviético, antes remetendo para um ambiente colectivo depressivo e de subjugação do Estado. Já a instalação da Última ceia do comunismo, concebida por Andrei Filippov, com longa mesa coberta por um pesado tecido vermelho e composta com pratos brancos vazios acompanhados à esquerda e direita por foices e martelos, mostra bem como se via o comunismo em 1989: algo semelhante a uma religião, um monoteísmo estatal que estava a chegar ao fim sem cumprir a sua função.

Mais perto dos nossos dias, o quadro de Anatoly Gankevich Os russos estão a chegar (de 2014), mostra um conjunto de várias dezenas de mulheres, idênticas na fisionomia e na marcha militar, com uma diferença face ao passado: consigo levam mastros não com bandeiras mas com tapetes, símbolos da riqueza material (e usados para enfeitar as paredes das casas).

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Feira da ladra Luís Villalobos

O estádio de Kirov

Para já, quem vai chegando, e a São Petersburgo são os turistas, a começar pelas excursões de chineses e passando pelos finlandeses e alemães. Portugueses não há muitos, algo a que não é certamente alheio o facto de não haver voos directos (é preciso fazer escala em Moscovo).

Para se promover mais no palco internacional do turismo, como pretendem as autoridades locais, nada como um evento da dimensão do Mundial de Futebol, que está a decorrer.

O novo estádio de São Petersburgo, que vai receber jogos como o Marrocos-Irão (do grupo que inclui a selecção de Portugal) ou uma das meias-finais e colocar por estes dias a Rússia no centro das atenções do mundo, tem ele próprio uma clara marca do passado.

Aqui, na casa do Zenit e onde já existia um outro estádio, há uma estátua colocada de modo a que não passe despercebida: trata-se de Sergei Kirov, histórico bolchevique que chegou a líder do partido comunista na então Leninegrado e que foi assassinado em 1934. Não há provas de que tenha sido Estaline a comandar os tiros, mas o certo é que por essa altura começou a grande purga, com muitos dos detidos/mortos a serem acusados por envolvimento no assassinato do dirigente soviético. No mínimo, a morte de Kirov provou-se útil ao terror de Estaline. Do alto do seu pedestal, o dirigente bolchevique assiste agora às multidões de fãs que se deslocam em direcção aos jogos, numa cidade em mutação visível, com o Mundial a provocar várias obras, desde novas pontes a estações de metro.

O metro é, aliás, a melhor forma de chegar à feira da ladra, que se realiza aos fins-de-semana em Udelnaya, já fora do centro. Aqui, cruzam-se as várias camadas da cidade, desde pelo menos a época comunista aos dias de hoje, com objectos que vão desde bustos enjeitados de Lenine a brinquedos soviéticos, passando por objectos do dia-a-dia e produtos de plástico feito na China - sinais dos tempos. Passear os olhos e as mãos por esta feira, tida como uma das melhores do seu género na Rússia, é atravessar parte da história de São Petersburgo (aqui, repete-se o aviso feito várias vezes à Fugas: cuidado com os carteiristas).

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No centro da cidade, um outro local onde também se consegue sentir a história concentrada é o hotel Astoria: edificado em 1910, recebeu diversos diplomatas internacionais e foi palco de eventos luxuosos, e, em 1917, acabou invadido e pilhado na revolução de Fevereiro, após uma luta sangrenta que provocou várias mortes. Hoje, junto às portas do elevador, destacam-se as placas douradas onde estão inscritos os nomes das várias personalidades que por ali passaram, como Rasputine, Lenine, a bailarina Galina Ulanova, o escritor Maxim Gorki e Putin (o toque português faz-se sentir pela placa com o nome de Jorge Sampaio, imediatamente abaixo do criador de moda Pierre Cardin).

Quando ainda se achava invencível, Hitler planeou fazer no Hotel Astoria a sua festa da vitória, tendo mesmo chegado, conta-se, a imprimir os convites - que acabaram por nunca ser enviados. São Peterburgo é isso mesmo: uma cidade resistente, fiel a si mesma, onde a passagem do tempo só parece trazer mais histórias.

A Fugas viajou a convite do Turismo de São Petersburgo

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