Municípios ganham margem para criar novas “contribuições”

Lei das Finanças Locais gera interpretações opostas. Fiscalistas admitem que nova norma permite às câmaras criar contribuições, mas há quem olhe para o diploma e diga que continuam impedidas de o fazer.

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LUSA/ANTÓNIO COTRIM

Com uma alteração cirúrgica à Lei das Finanças Locais que tem passado despercebida, o Governo propõe que os municípios contem com uma nova fonte de receita, podendo a partir de agora receber valores da cobrança de “contribuições”. Até aqui, as câmaras podiam criar taxas através de regulamentos municipais e receber receitas de impostos (como acontece com o IMI), mas não de “contribuições” (um género que alguns fiscalistas apelidam de “híbrido” e de que são exemplo as contribuições ambientais, a contribuição sobre a indústria farmacêutica ou sobre o sector bancário).

Agora, se o Parlamento ou o Governo (através de um decreto-lei) criarem contribuições especiais poderão afectar essa receita, ou parte dela, aos municípios ou a um determinado município.

Fiscalistas ouvidos pelo PÚBLICO fazem leituras diferentes da nova norma e há quem considere que o diploma abre mesmo a possibilidade de os municípios lançarem contribuições, correndo-se o risco de se assistir a uma multiplicação de impostos ocultos à boleia da imaginação dos autarcas. Mas se alguns juristas vêem esta hipótese, nem todos a identificam na nova lei.

A própria Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), quando emitiu um parecer ao projecto de diploma, tinha uma dúvida inicial, pedindo ao Governo que esclarecesse qual é “o tipo de contribuições que poderão estar aqui incluídas” e qual é o seu “enquadramento legal”. No fim de contas, qual é o espírito do legislador?

Muito dos casos de contencioso fiscal têm-se centrado em saber se uma taxa municipal é uma verdadeira taxa ou uma contribuição. A discussão é tecnicamente complexa e não começa aqui: há uma divergência antiga sobre o que são as “contribuições” e o que as distingue (ou não) dos “impostos” e das “taxas”.

Recuemos no tempo, antes de chegarmos à alteração que o Governo quer fazer à Lei das Finanças Locais, diploma discutido nesta sexta-feira no Parlamento. Se antes da revisão constitucional de 1997 apenas se reconheciam como tributos os “impostos” e as “taxas”, a partir dessa altura a Constituição passou a consagrar aquilo a que alguns fiscalistas chamam um “terceiro género”, porque passou a incluir as “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”. Mas, frisa ao PÚBLICO o fiscalista João Espanha, “quer da letra da lei, quer da Constituição, não resulta claro o que seja uma contribuição, por contraposição aos impostos e taxas; sabemos o que são impostos e o que são taxas, mas quanto ao que seja uma contribuição vai por aí uma grande confusão”. De forma simplificada, diz, é “uma espécie de ‘taxa colectiva’, em que a contrapartida beneficia um grupo específico de sujeitos de forma difusa, e que, por isso, esses sujeitos são chamados a suportar”.

João Ascenso, advogado de direito fiscal na sociedade Miranda & Associados, entende que a “alteração, por si só, não permite que os municípios possam lançar contribuições, sob pena de inconstitucionalidade”. A nova proposta não dá esse poder, apenas “permite que uma Lei do Parlamento ou um Decreto-Lei do Governo devidamente autorizado criem contribuições especiais e que afectem a receita desse tributo (ou parte dela) a um determinado município”, entende o advogado.

Mudanças futuras

Já João Espanha considera que, caso a nova norma avance, as contribuições – que, insiste, “não são taxas mas também não são impostos” – poderão ser criadas pelas autarquias.

O mesmo entendimento tem o fiscalista Sérgio Vasques, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no último Governo de José Sócrates. E se assim for, adverte, esse poder representará “um verdadeiro game-changer [agente de mudança]”. “Até agora isso estava-lhes vedado, ainda que se tenham criado ao longo do tempo muitas taxas [municipais] sem contrapartida evidente”. Quais serão as consequências? Para o professor de Direito fiscal, o Governo está a dar “um passo grande, que impõe a maior das cautelas”, porque há o risco da multiplicação de impostos ocultos e de “agravamento de custos de contexto” para as empresas espalhadas pelo território.

Está o Governo a procurar contornar o facto de o Tribunal Constitucional (TC) ter chumbado as taxas municipais de protecção civil em Lisboa, Vila Nova de Gaia e Setúbal? João Espanha considera não ser “evidente” que a mudança resolva o problema, ou seja, que torne constitucional a taxa “tal como a mesma foi originalmente prevista”, pois no caso de Lisboa, lembra, o TC afirmou que “ainda que se pudesse entender” que a taxa fosse uma contribuição financeira, a autarquia de Lisboa “teria invadido” a reserva de competência do Parlamento.

Ainda que João Ascenso, da Miranda & Associados, não considere que os municípios ficam com poder para criarem contribuições, o advogado nota que tem havido “uma tendência para alargar os poderes tributários dos municípios”. E admite que esta mudança possa “antecipar futuras alterações legislativas que venham a conferir esses poderes aos municípios (por exemplo, o alargamento do regime geral das taxas de forma a abarcar também as contribuições)”.

O que pretende, afinal, o Governo com esta alteração? O PÚBLICO não recebeu da secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais qualquer esclarecimento pedido há mais de uma semana. Fica por saber quais são as contribuições que podem ser abrangidas com esta iniciativa (tal como perguntava a ANMP) e se o Governo tem ou não em cima da mesa criar um regime geral das contribuições financeiras. Além da alteração de um artigo, a nova intenção do Governo não tem mais referências a longo do diploma.

Sérgio Vasques adverte que a criação de contribuições “não pode fazer-se no vazio, sob pena de perpetuarmos a litigância nos tribunais, o que não é bom para as autarquias sequer”.

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