Portugal-Espanha num rectângulo chamado mesa

Antes da bola rolar em Sochi, Sergi Arola e José Avillez discorreram sobre as comidas da Ibéria à volta de vinhos que a Sogrape produz nos dois países. Deu empate, como não podia deixar de ser

A mesa não é exactamente um campo de futebol, a comida não arrasta multidões dos cinco cantos do planeta como um campeonato de futebol e o vinho ainda não tolera competições com árbitros e fiscais de linha. Mas enquanto muitas dezenas de milhares de adeptos de futebol transformavam as ruas de Moscovo num exuberante carnaval de cores, trajes exóticos, orgulhos nacionais e mistérios por resolver (de onde vieram tantos peruanos? Como pode haver uma bancada só de homens como a dos sauditas?), num reputado restaurante instalado no 16ª andar da capital russa antecipava-se o Portugal-Espanha com lances de gastronomia e contra-ataques de vinho. Sergi Arola, o chef andarilho espanhol com várias experiências pelo mundo e conhecido entre nós pelo seu Lab, e o português José Avillez, do Belcanto, do Cantinho e por aí a fora, apreciavam o desenrolar do menu proposto pelo chef Vladimir Muhin, do White Rabbit, falaram da cozinha e das cozinhas da Ibéria e iam dando fôlego à conversa com vinhos de Portugal e da Espanha. Na arbitragem, Fernando Guedes, o CEO da Sogrape que organizou o encontro, ia fazendo as contas da estratégia que levou a companhia a centrar as suas apostas na península (mantendo as aventuras mais longínquas na Argentina, Nova Zelândia ou Chile).

Um campeonato do Mundo de futebol dá para tudo ou para quase tudo, principalmente para quem olha com agrado para a oportunidade que as paixões nacionais em torno de uma bola abrem para os negócios. A Sogrape não tem os meios da, por exemplo, Taittinger, a companhia francesa que patrocina o campeonato e aproveitou o momento para instalar no centro de Moscovo um loft no qual os seus clientes de todo o mundo podem refinar as discussões tácticas ou os movimentos dos jogadores com champanhe a caviar. Mas estar por estes dias na capital russa era, para muitas empresas, uma oportunidade a não perder. Porque a Rússia, apesar da geopolítica dos embargos, da distância ou dos impostos é um mercado cada vez mais importante – em 2010 a Sogrape não vendia uma única garrafa de Matéus Rosé, este ano deve ficar na ordem de um milhão, a oito euros cada, de acordo com as expectativas de Jorge Sousa, o português que veio para Moscovo em 2014 em viagens regulares e por cá montou base em 2016.

O menu de degustação do White Rabbit foi assim uma espécie de fio condutor de uma acção onde dois chefes ibéricos, importadores e responsáveis comerciais e do marketing da Sogrape (e dois jornalistas, do PÚBLICO e do El Pais) seguiram a história desse provável duelo que antecedeu o Portugal-Espanha. José Avillez, que escolheu o menu degustação por saber que “é nestes menus que os chefs fazem o que mais gostam” pareceu valorizar mais o estilo da cozinha do que Sergi Arola, que a considerou um pouco “plana” falha de “atitude” e de intensidade. Ambos reconheceram porém que o chefe russo era capaz de surpreender, como quando serviu uma couve grelhada com molho de champanhe e três variantes de caviar. Ou quando, no início, convidou os presentes a esfregarem as mãos numa bebida (Polugar) que, para lá de acompanhar o primeiro prato, deixava na pele um delicioso aroma de pão.

Não se pode dizer que no duelo da gastronomia Portugal seja capaz de competir com a Espanha. As estrelas do guia Michelin provam-no: os espanhóis têm 11 restaurantes com três estrelas contra zero dos portugueses, 25 dois estrelas contra cinco portugueses e 159 com uma estrela contra 18 nacionais. E a projecção internacional da comida portuguesa está longe também de ser comparável – em Moscovo não há um único restaurante inspirado na tradição culinária nacional. Sergi Arola, porém, diz que as coisas estão a mudar: “Os chefs portugueses estão a perder o medo”. E, depois, começa a haver em Portugal “turismo de qualidade para fazer despertar a cozinha”. O que falta ainda para que, neste duelo, Portugal não seja inapelavelmente batido pela pujança espanhola? Uma atitude mais confiante no património nacional. “A influência da cozinha portuguesa está em todo o mundo. O ‘foi tong’ da Tailândia são os fios de ovos (foi, será uma corruptela de fio?). A tempura japonesa ou a feijoada brasileira são claramente legados da Expansão. Há aqui um problema de afirmação: “Nem o calçadão de Copacabana, que é pura calçada portuguesa, sabemos vender como nossa”, concorda José Avillez.

Nos vinhos, o frente a frente é, apesar de tudo, mais equilibrado. Na enorme lista de vinhos do White Rabbit havia apenas três referências nacionais (um Terra de Tavares, um Conceito-Bastardo e um Soalheiro), embora as oito referências de vinho do Porto e as três de Madeira melhorassem o panorama. Mas é muito improvável que os fans do futebol que subiam ao 16º piso do restaurante as pedissem. Portugal é o sétimo maior exportador de vinho para a Rússia em valor (11 milhões de euros), mas não compara com os 120 milhões de euros da Espanha. No duelo de dois vinhos ibéricos da Sogrape, um LAN, da Rioja, e um Quinta da Leda, do Douro, ambos no mesmo segmento de preço (35 euros), não se encontraram explicações para tanta diferença. Talvez por isso, desde 2012 as vendas nacionais de vinho para a Rússia cresceram 87%, de acordo com a ViniPortugal.

“O Quinta da Leda é muito mais elegante e fino. O LAN é mais duro e com mais madeira”, explica José Avillez, dizendo estar mais próximo do estilo do tinto duriense. Sergi Arola concorda: “O LAN é mais austero, o Leda tem mais conteúdo e mais segredos. Os dois vinhos exprimem de alguma forma as diferenças entre a cultura de Portugal e da Espanha”. A Espanha mais assertiva, Portugal mais discreto. Sergi aprecia esta atitude menos ostensiva, que atribui à “influência britânica em Portugal”. De resto, o chef espanhol tem uma visão do mundo dos vinhos que coloca os franceses nas nuvens e deixa aos dois inquilinos da Ibéria a responsabilidade de produzir três dos grandes vinhos do Mundo: o Xerês, o Madeira e o Porto. No final do jantar, um Sandeman de 30 anos pareceu dar razão a Sergi. O importador russo, Igor Zverev , da empresa Alianta, que nos primeiros contactos exibira alguma contenção, estava agora exultante.

A comitiva desceria no final até à rua onde, em frente, se ergue uma das sete torres gémeas mandadas construir por Estaline nos anos 50. À mesa, tinha havido um conveniente empate – anunciado à partida. Ontem, a caminho de Sochi, um avião com adeptos espanhóis e uma rara tribo de asiáticos com as cores de Portugal (vieram da China ou dos Estados Unidos para celebrar Ronaldo) antecipava outro confronto. O que importa e o que faz mover tanta gente. Talvez mais sério, por isso mesmo. Portugal ou Espanha? Ganhe quem ganhar, terá direito a uma boa mesa com bons vinhos para celebrar.

O jornalista viajou a convite da Sogrape

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