Há cinema à solta pelo país? Há pois, mas não é bem a rede que se pensava

Um estudo agora divulgado sobre a exibição não-comercial de cinema confirma que ela existe à custa de muito voluntarismo e muita cinefilia, mas que é mais dispersa e menos independente do que se pensava

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O cinema Ideal onde se realiza a extensão do Doc Lisboa, o 6.doc, com sessões e conversas com convidados bruno liista

Se olharmos para qualquer cartaz de cinema, parece que há sempre qualquer coisa a mexer fora das salas de estreia. Programações regulares fora do circuito comercial (como as regulares actividades de cine-clubes por todo o país, os “Filminhos à Solta” para miúdos da Zero em Comportamento ou os ciclos do Instituto Alemão), extensões de festivais que assim se prolongam no tempo (como o Porto/Post/Doc com Há Filmes na Baixa! no Passos Manuel ou o Doclisboa com o 6.doc no Ideal)... A oferta existe, mesmo que nem sempre esteja muito visível.

Mas a verdade é que não existiam dados estatísticos sobre este tipo de exibição não tradicional, definida como “não comercial” — ou seja, todo o tipo de sessões regulares organizadas fora do circuito tradicional de distribuição por cine-clubes, associações culturais, festivais, mostras...

Foi para obviar a isso que a socióloga e colaboradora do PORDATA Luísa Barbosa, no âmbito da tese de mestrado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, decidiu lançar luz sobre este circuito paralelo. “A ideia era que a própria tese apresentasse os resultados desse estudo,” diz ao PÚBLICO, ao telefone, entre risos. “O processo revelou-se muito mais complexo!”.

De tal modo que o “trabalho de campo” iniciado em 2013 só agora, em 2018, começa finalmente a ser tornado público. O centro nevrálgico do estudo A Exibição Não-Comercial de Cinema em Portugal, coordenado por Luísa e por Helena Santos, da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, encontra-se num site lançado no início do mês de Junho. No endereço http://exibicaonaocomercialdecinema.weebly.com estão para já visíveis os primeiros resultados — preliminares e mais generalizados — do inquérito feito a meio milhar de entidades nacionais, repartidos entre aqueles que promovem a “exibição contínua de cinema” e “a exibição mais pontual de festivais competitivos e mostras”. Os dados, recolhidos entre Dezembro de 2015 e Maio de 2016, reportam-se aos três anos entre 2012 e 2014, mas esse desfasamento — inevitável devido à morosidade inerente a qualquer tratamento estatístico — não é um problema para Luísa Barbosa. “Creio que a situação não mudou muito, está mais ou menos estável. O número exacto de entidades é que pode variar.”

O estudo foi realizado com a ajuda do ICA, que apoia algumas destas entidades ao abrigo de uma definição de “rede alternativa de cinema”. Mas os resultados revelam que, na verdade, não existe uma “rede” organizada e articulada; antes uma série de entidades individuais dispersas, muito concentradas nas regiões de Lisboa e Porto. O que torna a surpresa maior é que a rede de cine-teatros existente seria a infra-estrutura ideal para programações deste género mas está sub-utilizada. “O país está relativamente bem equipado,” anui Luísa, “mas em muitos destes cine-teatros não há uma preocupação com a programação de cinema. Era importante que se começasse a desenvolver um circuito que funcionasse nestes equipamentos, e que [ao mesmo tempo] o estado olhasse para a questão geográfica.” Isto porque “a geografia do circuito reproduz as assimetrias que Portugal já apresenta ao nível da cultura e das artes.”

Os resultados do estudo confirmam, na verdade, o esvaziamento das regiões do interior — a maioria dos concelhos de Portugal, por exemplo, não tem cinema, nem mesmo salas comerciais — e a concentração deste tipo de sessões em Lisboa e no Porto. “Não esperávamos que houvesse tanta concentração, e nesse aspecto foi uma desilusão,” confessa a investigadora. “Mas não deixa de ser interessante verificar que a experiência dessa exibição configura diferentes contextos de relação, em alguns casos como cinema 'local' ou 'de bairro'."

Outra surpresa é o facto de muitas das entidades sondadas pelo estudo — maioritariamente associações e cooperativas — não se dedicarem exclusivamente à exibição de cinema. “Em alguns casos nem sequer é a actividade principal,” diz Luísa. “São entidades polivalentes, que desenvolvem de tudo um pouco”. E para um circuito que supostamente pretende divulgar cinema clássico e alternativo, a exibição não-comercial está completamente dependente da oferta das distribuidoras. “Essa foi uma das maiores surpresas,” explica a socióloga. “Numa primeira análise, grande parte do cinema exibido é recente e contemporâneo, [o que] está ligado às dificuldades de acesso à distribuição alternativa. E como estas entidades não funcionam em rede, não existe poder negocial com o mercado: marcar um filme que possa passar num número 'x' de cine-clubes é diferente de ser cada um a contactar a distribuidora.” Ainda assim, Luísa aponta (com satisfação) que o circuito presta especial atenção a documentários, curtas-metragens e cinema de animação.

Os resultados agora disponibilizados são ainda preliminares: “não queremos ficar muito mais tempo à espera, e por isso toda a informação vai ser apresentada no site à medida que os resultados forem sendo concluídos.” A divulgação faseada será acompanhada por comunicações e artigos académicos. “Contamos ter no final do ano grande parte dos resultados trabalhados,” diz Luísa Barbosa. E a ideia é que o site possa, futuramente, transformar-se numa “base de dados” aberta a todos sobre a exibição de cinema fora dos circuitos comerciais.

Notícia rectificada dia 16 de Junho, às 13h, relativamente às instituições onde se desenvolveu o estudo

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